Liderança teve importante papel na resistência contra violências que quase dizimaram os Waimiri Atroari durante a ditadura cívico-militar
Faleceu nesta terça-feira (16/01), em Manaus (AM), Wame Viana Atroari, importante liderança do povo Waimiri Atroari e uma das principais vozes durante o contato dos indígenas com os brancos na década de 1970.
Sobrevivente de uma política de Estado que quase dizimou seu povo, durante a ditadura cívico-militar (1964-1985), a liderança da Aldeia Iawara resistiu à construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista) e teve notável papel na defesa da comunidade.
"Primeiro passou a topografia, derrubando mato com machado. Depois veio outra topografia cavando terra, buraco, pra fazer asfalto. Depois que passou a topografia, eu vi meu pessoal morrendo", relatou Wame no especial 'Kinja: gente de verdade', lançado pela Rede Amazônica em junho de 2023.
Em nota, a Associação Comunidade Waimiri Atroari (ACWA) classificou a perda como “imensurável” e destacou as características marcantes dessa liderança histórica na luta pela preservação do território tradicional e do modo de vida dos Waimiri Atroari.
“Dono de uma postura emblemática e marcante, tinha uma expressão séria, atenta e altiva mas, em sua voz, também havia a bravura de um Guerreiro e a sabedoria e a calmaria de um Grande Líder.”
Da preservação dos costumes ancestrais, defendida por Wame, e da sabedoria acumulada nas trágicas experiências de contato com os homens brancos, os Waimiri Atroari garantiram, em 2020, seu isolamento contra a Covid-19.
Com organização exemplar e uma equipe de saúde própria, a comunidade não registrou nenhum caso da doença dentro do território tradicional.
A luta desse povo pelo cuidado com o território e o modo de vida tradicional da comunidade foi registrada no livro Waimiri Atroari: divulgando nossa história, realizado por pesquisadores indígenas de 31 aldeias, disponível na loja do Instituto Socioambiental (ISA).
“A partida prematura e inesperada do Wame nos entristece. Está sendo uma perda enorme para o seu povo, a quem envio um forte abraço!”, afirmou o sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli.
O ISA lamenta profundamente o falecimento de Wame Atroari e se solidariza com sua família, amigos e parceiros.
Leia a homenagem de Maria da Fé de Souza Moreira, diretora da Associação Comunidade Waimiri Atroari (ACWA):
"Falar do Wame é inspirador, ele tinha uma leveza que tornava tudo muito fácil, mesmo diante de todas as atrocidades que ele viveu e viu o seu povo sofrer. Era uma pessoa muito emblemática e teve um processo de construção cultural, social e político muito marcante para os Waimiri Atroari. Esteve em Brasília com o irmão Mario Parwe, em 1988, durante o Movimento Nacional Constituinte, foi o início do contato com o Porfirio Carvalho, na época em que era assessor parlamentar do Deputado Federal Mário Juruna, e nascia neste momento a grande parceria e amizade entre os Waimiri Atroari e o Porfirio Carvalho.
Wame tinha uma inteligência fora do comum, foi o primeiro a entender o que era importante para a sobrevivência do povo Waimiri Atroari: foi o primeiro kinja a fazer contato com os kaminja (branco), aprendeu a falar português e foi fundamental no processo de contato. Foi primeiro kinja a tirar carteira de motorista, aprendeu a fazer manutenção mecânica nas bombas d’água dos poços artesianos das aldeias.
Engajado, teve uma liderança muito combativa e atuante em defesa do território e da causa indígena na época da construção da BR-174, durante o período da ditadura militar, abraçou todas as crianças e jovens que tiveram seus pais mortos durante esse confronto com o exército.
Wame construiu grandes narrativas sobre as mais diversas questões sociais junto ao povo Waimiri Atroari, como saúde, educação e meio ambiente. Sobretudo nas questões culturais, ele vivia toda ancestralidade e fomentava toda essa vivência de forma pulsante e latente, e passava todo esse conhecimento para as crianças e toda a juventude, que sempre foi a sua grande preocupação no sentido de preservar a cultura do seu povo.
Wame foi um grande líder para os Waimiri Atroari, muito expressivo, sério e tinha um tom de voz doce, e trazia nas palavras a sabedoria de um sobrevivente. Como de fato foi, sobreviveu a invasão do território, a construção de grandes empreendimentos como a BR-174, Mineração Taboca, Hidrelétrica de Balbina, assim como a redução populacional quando estiveram quase em vias de extinção, e atualmente o Linhão de Tucuruí, e nem por isso ele perdeu a esperança, e como grande líder ele manteve a comunidade unida, exaltando sempre o sentido de coletividade. Ele foi um Guerreiro e tornou-se guardião do seu povo. Ele era gigante.".
Maria da Fé de Souza Moreira trabalha com os indígenas Waimiri Atroari há 31 anos e atualmente escreve sua dissertação do mestrado em Antropologia Social sobre as memórias dos Waimiri Atroari e a sobrevivência desse povo aos grandes empreendimentos que afetaram seu território.