#ElasQueLutam! Liderança atuante na Cooperquivale e na Rede de Sementes do Vale do Ribeira luta pela preservação da Mata Atlântica e pela garantia dos direitos quilombolas
Desde a primeira infância, Maria Tereza Vieira semeia o futuro do seu povo. Na comunidade em que nasceu, o Quilombo Sapatu, no município de Eldorado (SP), as crianças acompanhavam os pais no plantio das roças tradicionais. Semente por semente, ela contribuiu com o trabalho da mãe, que criou e sustentou a família por conta própria.
Depois de colhidos os alimentos, ela e os irmãos ajudavam no preparo da refeição. Ela recorda do que aprendeu debulhando feijão e socando arroz no pilão com a família.
“É diferente de agora. Agora tá tudo ali pros nossos filhos, é só pegar e fazer. [...] Tudo isso fez a gente crescer mais forte, todo esse aprendizado lá atrás colaborou para eu, hoje em dia, dar conta de muitas coisas”, diz.
Quando se casou, mudou-se para o Quilombo Nhunguara, onde vive a família do ex-marido. Os conhecimentos transmitidos pelas gerações anteriores se tornaram inspiração quando, alguns anos após o nascimento da filha caçula, passou por uma separação.
“Essa imagem da minha mãe, de como ela fazia, ficou na minha cabeça. [...] Eu consegui cumprir meu papel [de mãe], mas foi por tudo isso que eu aprendi lá atrás. Eu não me apavorei e pensei ‘se a situação ficar um pouco mais difícil por aqui, eu sei como fazer’.”
Ser quilombola no Século XXI
Ainda carregada de uma nostalgia da infância no quilombo, Maria Tereza destaca que muita coisa mudou na rotina dos quilombos do Vale do Ribeira, sobretudo pela chegada de novas tecnologias. “Muitas vezes eu saía para trabalhar e deixava o feijão lá cozinhando no fogão a lenha, cuidando daquela panela para não queimar, controlando com a lenha e não com o gás. Hoje em dia todo mundo tem fogão”.
Esse novo cenário permite que seja destinado mais tempo para o cuidado com a floresta e para a articulação política, de modo que a cultura e o conhecimento ancestral das populações quilombolas no Brasil fortaleçam a luta por direitos também fora das comunidades.
A agricultora lembra que já foi questionada sobre seus olhos claros, a partir do olhar de quem julga haver um padrão estético comum para a população quilombola. “Teve pessoas que me fez essa pergunta, se eu realmente sou quilombola. Eu respondo para eles que eu tenho certeza que sou quilombola, porque tudo é quilombola. Meus parentes, bisavós, é tudo família do quilombo, tudo residiu nessa região nossa e são quilombolas. Em momento algum eu não me considerei quilombola por isso”.
Esses espaços, inicialmente ocupados enquanto resistência frente à escravidão e à colonização, são hoje o lugar da liberdade e da justiça, marcado por saberes ancestrais no cuidado com as pessoas e com a terra. “Geralmente quem não conhece aquele mundo, imagina que o quilombo é aquela coisa de cem anos atrás”, afirma.
A luta é coletiva
Conforme os filhos foram crescendo, Maria Tereza Vieira despertou para a luta por direitos das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira.
A agricultora decidiu terminar os estudos no colegial e passou a participar ativamente das reuniões da associação de moradores da comunidade em que mora e da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
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A vida em meio a um dos maiores maciços preservados de Mata Atlântica do país é marcada pela diversidade do bioma. No Vale do Ribeira, Maria Tereza realiza a coleta e beneficia sementes florestais nativas junto a outras famílias quilombolas.
“Por onde a gente anda tem muita semente. Todo local que a gente olha, a gente vê as sementes. Têm facilidade para coletar as sementes, então isso está chamando muito a atenção das mulheres”.
Em 2022, Maria Tereza participou, em São Paulo e Registro, dos eventos de lançamento do livro “Do Quilombo à Floresta: guia de plantas da Mata Atlântica no Vale do Ribeira”, publicado pela Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
“Nós temos como viver com a mata em pé e é isso que nós queremos. O povo quilombola sabe muito bem como fazer isso, temos muitas sabedorias e com esse guia queremos que todos entendam isso: como saber respeitar cada espécie”, comentou na ocasião.
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O trabalho de 60 coletores e coletoras quilombolas contribui para a preservação de áreas degradadas na Mata Atlântica, geração de renda para as comunidades e maior autonomia financeira das mulheres, que hoje representam 60% dos membros da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
“A gente vê que isso tá fazendo muita diferença na vida delas, porque vendendo essas sementes, [elas] têm um dinheiro extra”.
Em 2023, a liderança do quilombo Nhunguara se tornou coordenadora-adjunta da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que dá assistência ao escoamento e comercialização dos alimentos produzidos pelos agricultores quilombolas do Vale do Ribeira (SP).
Essa articulação em rede e nas associações fortalece a luta política das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira pelo direito às roças, ao território e pelo combate ao racismo ambiental.
“Um trabalho, para dar certo, envolve outras pessoas junto com a gente, para o trabalho progredir, caminhar, expandir. E é isso que a gente quer. A gente tem que lutar, tem que desafiar, tem que se unir. E é isso que a gente faz quando vê que a coisa vai complicar, a gente se reúne com as outras comunidades, em movimento no local e se precisar até em Brasília”.
A resistência continua
Ao relembrar a infância no Quilombo Sapatu, Maria Tereza Vieira ressalta que hoje os jovens têm acesso a tecnologias e oportunidades de estudo que contribuem para a proteção territorial, para a organização das comunidades e para a garantia dos direitos assegurados pela Constituição Federal.
“A faculdade tá voltada mesmo pros descendentes do quilombo. Então, eles voltam pro território e começam a valorizar o nosso local, a nossa convivência: ‘foi através do quilombo que eu consegui estudar. Então, tenho que fazer alguma coisa por esse povo’”.
Ainda há muito a ser trilhado para que a juventude se engaje, de fato, na luta das comunidades, mas a participação dessa população já contribui no cotidiano dos quilombos do Vale do Ribeira.
Maria Tereza toma como exemplo a filha, Liliane, que se formou em Biologia e hoje trabalha na Cooperquivale. “Eu tenho certeza que vão aparecer vários outros como ela daqui para frente e a coisa só vai se multiplicar. Eu acho que vai fortalecer muito as comunidades por causa disso”.