Oposição e governo votaram juntos a favor dos retrocessos. Emissários do presidente Lula voltam a repetir que “jabutis” contra proteção ambiental serão vetados
Texto atualizado às 19:22 de 26/5/2023
O plenário da Câmara aprovou, na noite de quarta (24), por 364 a 66 votos, sua versão do texto da Medida Provisória (MP) 1.150/2022, com uma série de dispositivos que atacam a proteção da Mata Atlântica, de margens de rios e “zonas de amortecimento” de Unidades de Conservação (UCs), como parques e reservas, em perímetro urbano.
O texto foi analisado pelo Senado, na semana passada, e agora segue à sanção ou veto presidencial. Apenas PSOL, Rede, PDT e PCdoB orientaram votação contra o parecer do deputado ruralista Sérgio Souza (MDB-PR). Governo e PT orientaram a favor, junto com partidos da oposição, como o PL.
Segundo o vice-líder governista Rubens Pereira Júnior (PT-BA), a decisão respeita o acordo feito, ainda na primeira votação na Câmara, pelo qual o União Brasil teria se comprometido a não derrubar possíveis vetos do presidente Luís Inácio Lula da Silva às alterações feitas na proposta original. O partido foi o responsável pela inclusão na MP dos principais pontos contrários à conservação ambiental.
“Lula vai vetar a flexibilização da proteção à Mata Atlântica”, garantiu a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), em um tuíte. Também no Twitter, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, divulgou o trecho de uma entrevista em que reafirma o compromisso do governo com a agenda ambiental e informa que defenderá o veto desses pontos junto ao presidente. “Eu sei que há o compromisso do veto” [do presidente Lula]”, reforçou o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA). Ele já tinha feito a mesma afirmação na passagem da matéria pela Casa.
Pouco depois da MP 1.150, o plenário da Câmara também aprovou o regime de urgência do PL 490/2007, que pretende inviabilizar a demarcação de Terras Indígenas (TIs). No mesmo dia, igualmente com apoio do governo, foi aprovada numa comissão mista, formada por deputados e senadores, outra MP, de número 1.154, com a proposta do governo Lula para a nova estrutura da Esplanada dos Ministérios, com uma série de medidas que esvaziam as pastas do Meio Ambiente e Povos Indígenas.
A série de votações de quarta foi classificada pela sociedade civil como uma tentativa de desmonte das políticas socioambientais comparável à realizada pelo governo Bolsonaro. Quase 800 instituições, entre organizações ambientalistas, movimentos sociais, órgãos de pesquisa e associações privadas, divulgaram uma nota condenando a aprovação das medidas. O ISA assinou o documento.
Recado da Câmara
A retomada do texto anterior da MP 1.150 pode ser considerada um recado duro, espécie de troco, ao Senado da maioria da Câmara ‒ ruralistas, bolsonaristas, "Centrão" e o presidente Arthur Lira (PP-AL) à frente ‒ em meio à relação já difícil das duas casas nos últimos meses.
Na semana passada, por votação simbólica, os senadores haviam “impugnado” os dispositivos da MP que enfraquecem a legislação ambiental, sob a justificativa de serem “jabutis” ou “contrabandos legislativos”. Esse é o jargão usado no Congresso para uma emenda sem relação com o tema original e que entra de surpresa num projeto de conversão em lei de uma Medida Provisória, atropelando o processo legislativo. Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) veda a prática.
Editada ainda pelo governo Bolsonaro, a redação original da MP 1.150 apenas ampliava o prazo para o ingresso dos produtores rurais nos Programas de Regularização Ambiental (PRAs), previstos na Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), que substituiu o antigo Código Florestal de 1965 (saiba mais abaixo e no quadro ao final da reportagem).
Teoricamente, não seria permitido retomar os pontos “impugnados” pelo Senado, mas isso foi ignorado na votação de quarta pela Câmara. Com uma interpretação já contestada em outro caso, Lira rejeitou a “questão de ordem” da deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS) para que a decisão dos senadores fosse respeitada.
“Quem tem a condição de dar admissibilidade a qualquer matéria, sobre tema afim ou não, é a mesa diretora da Casa onde ela tramita. Nem a Câmara pode inferir, em matérias que o Senado vota, para dar como ‘matéria estranha’, nem muito menos o Senado [pode fazer o mesmo no caso da Câmara]. Isso já aconteceu o ano passado, e nós refizemos o texto na Câmara. O Senado não tem essa base regimental de analisar a matéria”, alegou o parlamentar.
“Não é possível que o bioma mais desmatado do país seja tratado dessa forma. Não é possível que aquilo que foi conquistado em 2006 [quando a Lei da Mata Atlântica foi editada] seja desmontado, na calada da noite, por uma Medida Provisória de um governo que estava saindo”, criticou a deputada. Restam apenas 12% da cobertura vegetal original do bioma.
Os senadores Alessandro Vieira (PSDB-SE), Eliziane Gama (PSD-MA), Otto Alencar (PSD-BA) e Jorge Kajuru (PSB-GO) impetraram, hoje, um mandado de segurança no STF contra os retrocessos ambientais previstos na MP. Já a presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, Leila Barros (PDT-DF), afirmou que também pedirá a Lula o veto aos dispositivos.
Melchiona avisou que vai recorrer à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e também estuda apresentar uma ação no STF por entender que a obrigatoriedade da exclusão dos “contrabando legislativos” seja uma questão já decidida pela corte.
Texto da Câmara
O que foi classificado como “jabutis” pelos senadores, e agora foi retomado pela Câmara, foram os itens que estabelecem várias permissões diferentes para mais desmatamentos na Mata Atlântica e nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) de margens de corpos de água nos perímetros urbanos. Outro ponto assim considerado foi a possibilidade de eliminação das "zonas de amortecimento" de UCs também em perímetro urbano.
Além disso, a redação da Câmara da MP 1.150 prorroga por mais um ano o prazo para a adesão ao PRA. O problema é que esse limite de tempo vale após a convocação dos governos estaduais para essa adesão, mas não foi definido um período determinado para isso acontecer, e apenas seis estados começaram a implantar esses programas. Outro problema apontado pelos ambientalistas é que os produtores rurais não poderão ser punidos por desmatamentos ilegais (realizados até 22 de julho de 2008) antes do fim do prazo da convocação. Por meio do PRA, os produtores rurais formalizam o compromisso de reflorestar ou compensar áreas desmatadas ilegalmente.
Em resumo, a versão da MP saída da Câmara abre brechas para que a legislação não seja cumprida de fato. Essa é sexta vez que a adesão ao PRA é adiada. A questão se arrasta desde 2012, quando o novo Código Florestal foi aprovado (saiba mais nos quadros ao final da reportagem).
O que muda com a versão da Câmara da MP 1.150/2022?
Mata Atlântica
‒ Hoje, a Lei da Mata Atlântica exige que o desmatamento de vegetação primária (nunca desmatada) e secundária (já desmatada) em estágio avançado de regeneração no bioma só seja feita num local se não for possível fazer isso em outro, com menos impactos, ou seja, sem a chamada "alternativa técnica e locacional. A MP extingue a exigência.
‒ O texto da MP também dispensa o parecer técnico de órgão ambiental estadual para desmatamento de vegetação da Mata Atlântica no estágio médio de regeneração em área urbana. Segundo o texto aprovado, nesse caso, o desmatamento dependerá só de uma autorização do órgão ambiental municipal, em geral mais vulnerável à pressão de interesses econômicos e políticos locais.
‒ Permite que órgão municipal autorize o desmatamento e exploração de vegetação secundária em estágio inicial de regeneração da Mata Atlântica, em áreas urbanas e rurais.
‒ Permite que órgão municipal autorize o parcelamento do solo para fins de loteamento ou qualquer edificação em área de vegetação secundária, em estágio médio de regeneração da Mata Atlântica. Também retira a necessidade de que a autorização seja prévia.
- ‒ A MP dispensa as obrigações de Estudo de Impacto Ambiental para o desmatamento necessário à implantação e ampliação de "empreendimentos lineares" e da captura, coleta e o transporte de animais silvestres nas áreas desses empreendimentos, também na Mata Atlântica. São considerados "empreendimentos lineares" linhas de transmissão, gasodutos e sistemas de abastecimento público de água localizados na “faixa de domínio e servidão” de ferrovias, estradas, minerodutos e outras linhas de transmissão. Dependendo de um parecer técnico, o mesmo poderá acontecer em condomínios e resorts.
Unidades de Conservação (UCs)
‒ Elimina a "zona de amortecimento" de Unidades de Conservação (UC), como parques e reservas, em perímetro urbano. A "zona de amortecimento" prevê restrições a obras, empreendimentos e atividades econômicas numa faixa limítrofe a essas áreas protegidas com o objetivo de minimizar impactos ambientais sobre elas.
Lei de Proteção da Vegetação Nativa (nº 12.651/2012)
‒ O texto aprovado na Câmara ampliou flexibilizações sobre as Áreas de Preservação Permanente (APPs) em perímetros urbanos, permitindo que, mesmo em regiões com características rurais mas definidas como urbanas por lei municipal, seja permitido desmatar em faixas inferiores às definidas na regra geral federal. O texto saído da Câmara também suprimiu a necessidade de consultas ao Conselho Estadual do Meio Ambiente sobre alterações feitas na lei municipal sobre esse tema.
‒ Segundo texto aprovado, não será mais necessário compensar desmatamentos fora de APPs provocados por "empreendimentos lineares" na Mata Atlântica. Se o desmatamento acontecer dentro da APP, a compensação fica limitada a uma extensão igual ao desmatamento.
‒ Os produtores rurais passam a ter até um ano após a “notificação” (individual) do órgão ambiental estadual para ingressar no PRA. Não há uma data específica para se fazer isso.
‒ A partir da assinatura do Termo de Compromisso do PRA e durante sua vigência, o produtor rural não poderá ter financiamentos negados por causa das infrações objeto desse termo; na prática, antes isso pode acontecer.
‒ Introduz a obrigatoriedade de validação do CAR e da identificação dos passivos ambientais de cada produtor rural pelo órgão ambiental como condição para adesão ao PRA. O problema é que uma parte ínfima do processo de validação e identificação de irregularidades já foi concluída pelos estados.
‒ A MP também adia o limite de tempo para acesso aos benefícios concedidos por meio da inscrição no CAR, por exemplo redução de APPs conforme as regras da lei e suspensão de sanções. O prazo havia vencido em 31 de dezembro de 2021, mas foi adiado, agora, para até dezembro de 2023, para imóveis maiores de 4 módulos fiscais, ou até dezembro de 2024, para imóveis menores de quatro módulos ou familiares.