Segundo acordo, membros da Comissão de Constituição e Justiça deverão esperar “conciliação” sobre o assunto que começa no STF em agosto
Texto atualizado às 15:20 de 11/7/2024
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado adiou, até o fim de outubro, a votação da proposta de emenda (PEC) que pretende incluir na Constituição o “marco temporal” da demarcação das Terras Indígenas (TIs).
Segundo acordo fechado na sessão da manhã desta quarta (10), foi feito um pedido coletivo de "vistas" (mais tempo para análise) da PEC 48/2023, após a leitura do parecer favorável do senador Esperidião Amim (PP-SC). Agora, o colegiado deve aguardar o fim do processo de “conciliação” sobre o assunto determinado para acontecer no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ministro Gilmar Mendes. Conforme o entendimento dos parlamentares, o resultado dos debates no tribunal deverá ser convertido numa proposta a ser votada na comissão.
A ideia foi do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), diante da perspectiva de aprovação da PEC, já que a comissão é dominada pela oposição, ruralistas e bolsonaristas à frente. Wagner disse que vai encaminhar a tratativa fechada na CCJ a Mendes, via presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele avaliou que ela será vista como um gesto de boa vontade do Congresso diante da série de atritos com o STF.
Mendes decidiu realizar a “conciliação” no âmbito do julgamento de cinco ações que analisam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que estabelece o “marco temporal”. Trata-se de uma tese ruralista segundo a qual só poderiam ser reconhecidas as TIs em posse das comunidades indígenas na data da promulgação da Constituição, 5/10/1988. A interpretação restringe drasticamente o direito à terra dos povos originários e desconsidera o histórico de violências e expulsões sofridas por eles.
O ministro do STF ainda não analisou um pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para que sua decisão seja apreciada pelo plenário da Corte e para que o relator das ações seja o ministro Edson Fachin. Fachin relatou outro processo que culminou na decisão do Supremo que considerou o “marco temporal” inconstitucional, em setembro do ano passado, antes do Congresso derrubar os vetos do presidente Lula à Lei 14.701 e promulgá-la, em dezembro.
Críticas a líder do governo
O adiamento da votação foi considerado “acertado” por Dinamam Tuxá, membro da coordenação da Apib. Ele reforçou a posição do movimento indígena de que a PEC é inconstitucional. “[Ela] é um atentado contra os direitos indígenas”, defendeu.
Kléber Karipuna, outro integrante da coordenação da Apib, criticou duramente o processo de mediação proposto por Mendes e a articulação política do governo no Congresso, na pessoa de Wagner. De acordo com ele, desde a tramitação do projeto que deu origem à Lei 14.701, em 2023, o senador não tem feito o esforço necessário para defender os direitos indígenas no Senado.
“[Vem sendo um] posicionamento vergonhoso, para a gente, do líder do governo no Senado, senador Jaques Wagner; se posicionando mais uma vez em cima do muro”, afirmou. “Mais uma vez, [ele vem] se colocando num posicionamento dúbio, duvidoso, que não condiz, muitas das vezes, com a postura do presidente Lula, nesse sentido, em relação à defesa dos direitos dos povos indígenas”, completou.
Do lado de fora do Congresso, lideranças indígenas e organizações aliadas protestaram contra a PEC 48. Manifestações também aconteceram nas redes sociais e em alguns estados, como Bahia e Santa Catarina.
O movimento indígena avalia que a articulação política governista evita confrontar a oposição em temas considerados por ela secundários, como a pauta indígena, para não se desgastar e perder as votações dos projetos da agenda econômica, tida como prioritária. As lideranças indígenas também criticam a Casa Civil por ter paralisado as demarcações, igualmente para o governo não se indispor com interesses políticos e econômicos regionais.
Na segunda (8), a Apib reuniu-se para reavaliar seu apoio à gestão Lula. A entidade deverá promover uma série de protestos no segundo semestre em defesa das demarcações.
Aceno aos ruralistas e preocupações para os indígenas
A PEC 48 foi pautada nesta semana como um aceno aos ruralistas do presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), para tentar ganhar votos na eleição à Presidência do Senado, no início do ano que vem. Alcolumbre é considerado franco favorito no pleito.
O adiamento da votação até pode ser considerado uma boa notícia para o movimento indígena e seus aliados, considerando que, assim, ganham mais tempo para tentar impedir a aprovação do projeto.
O fim da sessão da comissão, no entanto, deixou várias preocupações no ar. Se o acordo proposto no colegiado for aceito por Gilmar Mendes, o tempo dos debates no STF será abreviado: inicialmente, o ministro propôs que eles aconteceriam entre 5/8 e meados de dezembro e, agora, podem terminar cerca de um mês e meio antes.
Ministros do STF têm feito declarações no sentido de pacificar as relações com o Congresso. Além disso, Gilmar Mendes é o ministro da Corte com atividade política mais intensa. Ele aproximou-se do governo desde o início da gestão Lula. Por outro lado, sempre foi próximo dos ruralistas e mantém canais de comunicação com os bolsonaristas.
Em função disso tudo e da necessidade de produzir uma proposta a ser enviada ao Congresso em pouco tempo, as pressões por um resultado que agrade a maioria não indígena serão ainda maiores no processo de "conciliação" sobre o assunto no tribunal.
Mendes convocou representantes da Câmara, do Senado, dos partidos que propuseram as ações, dos governos federal, estaduais e municipais para participar das discussões. Os representantes da Apib serão minoria. A entidade ainda discute se vai ou não participar e como.
Além disso, ao sugerir remeter a discussão para o STF, Wagner explicitou a disposição do governo em participar de negociações que, em função da correlação de forças desfavorável aos indígenas na Praça dos Três Poderes, devem resultar em novas restrições aos direitos dos povos originários.
“Eu topo apanhar dos dois lados para achar um caminho do meio”, disse Wagner na sessão da CCJ. “Eu me disponho a entrar porque eu me disponho a apanhar do meu lado”, completou.
Apesar dessa correlação de forças desfavorável, o senador sugeriu que há uma suposta equivalência entre indígenas e ruralistas. “Tudo na vida tem quem queira defender com legitimidade e tem quem queira defender para tirar proveito, de um lado e de outro. Eu acho que santos e diabos estão em todos os lados”, afirmou.
Rodrigo Pacheco escolheu Wagner, a senadora ruralista Tereza Cristina (PP-MS) e a advogada-geral do Senado, Gabrielle Tatith Pereira, para participarem do processo no Supremo.
Direito de minorias
“Espera-se que o STF exerça sua função de proteger os direitos das minorias, que não podem estar sujeitos à deliberação político-majoritária. Se as maiorias puderem transigir sobre os direitos das minorias, a consequência pode ser a sua aniquilação”, comenta a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Ela lembra que não são só os direitos indígenas que estão em jogo. “A PEC está ancorada em negacionismo climático e desdenha do consenso científico sobre a importância das Terras Indígenas para a conservação das florestas”, explica. “Defender as terras indígenas é defender a mitigação dos eventos climáticos adversos e proteger toda a população brasileira. Ao dificultar as demarcações e estimular as invasões às Terras Indígenas, a aprovação desse projeto vai aumentar os riscos de eventos climáticos extremos para todo o país e sua população, como as recentes enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul”, alerta.
Batista elaborou uma nota técnica do ISA sobre a PEC 48. O documento reforça que o projeto é inconstitucional e suprime direitos e garantias individuais. Também lembra que não foi feita uma consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas sobre o assunto, conforme o estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
Na sessão da CCJ, o relator, Esperidião Amin, repetiu argumentos ruralistas para tentar convencer de que textos constitucionais anteriores e a Constituição de 1988 previram um "marco temporal" e que rejeitá-lo implicaria “insegurança jurídica”.
Amim disse que o STF criou uma "balbúrdia interpretativa" sobre o assunto. Apesar disso, ele tentou afastar qualquer intenção da PEC 48 de confrontar a decisão do Supremo que considerou o marco inconstitucional. “O legislador não está vinculado a seguir eventual entendimento da Corte Suprema”, defendeu. “Em se tratando de uma PEC, menos ainda estamos vinculados a qualquer entendimento do STF”, completou.