Mesa debateu contribuições para a educação antirracista e contou com tarde de autógrafos com os autores de ‘Roça é Vida’ e ‘Na companhia de Dona Fartura’
Na tarde de terça-feira (02/07), os autores Kerexu Mirim, liderança da Terra Indígena Tenondé Porã, em São Paulo, e Luiz Ketu, liderança do Quilombo São Pedro, em Eldorado (SP), levaram saberes indígenas e quilombolas para o palco principal d’A Feira do Livro. A mesa “Saberes ancestrais na sala de aula” teve mediação de Tatiane Klein, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA) e trouxe reflexões importantes sobre o direito à educação diferenciada e das experiências nas escolas indígenas e quilombolas como caminhos para uma educação antirracista.
Além das lideranças, também estiveram presentes para uma tarde de autógrafos os demais autores dos livros Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola e Roça é vida, junto a Luiz Ketu: Márcia Cristina Américo, Viviane Marinho Luiz, Laudessandro Marinho da Silva.
Foi reverenciando seus ancestrais que Luiz Ketu, tataraneto de Bernardo Furquim – fundador da comunidade onde vive – deu início à roda de conversa. "Falar do lugar de atuação, de vivência, é falar primeiramente desse lugar de ancestralidade, desse lugar de território de onde eu venho, de onde que eu conto as minhas histórias e conto um pouco da minha experiência", afirmou.
O Quilombo São Pedro, localizado entre as cidades de Eldorado e Iporanga, no Vale do Ribeira, foi fundado entre 1825 e 1830, mas apenas em 2022, quase 200 anos após sua fundação e mais de 130 anos após a abolição formal da escravidão, os moradores conquistaram o título definitivo do território coletivo.
Kerexu Mirim, por sua vez, destacou o processo de retomada que seu povo, Guarani Mbya, vive. Ela explica que, atualmente, na Terra Indígena Tenondé Porã, das 14 aldeias, 12 são áreas retomadas e que o caminho para assegurar e recuperar o acesso ao território e ao modo de vida guarani ainda está sendo percorrido. “Além de retomar o território, também foram retomadas as práticas do cotidiano guarani e a revitalização da casa de reza, dos cantos, dessa conversa das crianças com os mais velhos que foi perdida por causa do espaço pequeno”, explicou.
A TI foi declarada pelo Ministério da Justiça em 2016, após intensa mobilização do povo Guarani exigindo a regularização do território. Até o momento, não houve a assinatura do decreto de homologação da área pela presidência da República.
“Para a gente foi e está sendo muito importante essas retomadas, e a gente também está conquistando, de pouquinho em pouquinho, antes da demarcação, para poder assegurar um pouco da mata que resta aqui em São Paulo e que está segurando esse calor também que faz”, afirmou.
Educação diferenciada
Sobre a educação escolar quilombola, Luiz Ketu destacou a morosidade e os entraves que existem na criação de normativas específicas para garantir a educação diferenciada. “O racismo rege essa base estrutural, então ele também vai estar presente nos espaços de poder justamente para a manutenção de uma certa hegemonia. E isso também acontece na educação”, pontuou.
Ketu, que é doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também trouxe a importância da presença quilombola nos espaços de produção de conhecimento, como as universidades, para que haja provocações às estruturas vigentes.
Citando a pedagoga Nilma Lino Gomes, a liderança quilombola também lembrou do papel educador do movimento quilombola – seja por meio das associações locais em territórios quilombolas ou de organizações nacionais –, como a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), que cumprem o papel de demandar do Estado a garantia dos direitos da população quilombola, principalmente no âmbito da educação.
“O movimento traz essa proposta: se a escola é esse modelo que a gente tem hoje de sentar-se na cadeira, ficar ali, se ele não se deslocar para olhar para fora da janela, a gente não vai ter avanço. Então, se o aluno ou aluna tem uma série de conhecimentos que estão ali todos os dias no espaço no território e isso não está em sala de aula, a gente tem um problema sério: ou temos uma falta de informação ou temos um projeto que começou lá antes de 1500 e que ainda está pautado em vigor com isso”, argumentou.
Na mesma direção, Kerexu Mirim, em sua experiência como professora, compartilhou algumas das questões que têm norteado as discussões sobre educação diferenciada em seu território, como qual tipo de pessoa se deseja formar: “Uma frase que a gente sempre ouve é: ‘você tem que ir para escola para ser alguém na vida’, mas a gente já é alguém”, assinalou.
“É tudo voltado para dinheiro. A gente não quer isso, então a gente usa a disciplina da matemática plantando milho, plantando mandioca, colhendo, então para isso que vai servir a matemática. Não é só para contar dinheiro. Para a gente é assim, o que é levado para a nossa escola Guarani é voltado para nossa realidade”, completou.
Escrever, sem abandonar a tradição oral
Outro aspecto destacado por Kerexu Mirim foi a desvalorização do conhecimento dos anciãos de seu povo, geralmente transmitidos aos mais novos por meio da oralidade e da memória. “A escola veio com essa ideia bem fechada de um lugar de conhecimento, como se os nossos e as nossas antepassadas, nossas mães e nossos pais, não tivessem conhecimento”, criticou.
Para ela, que é filha de um dos pioneiros da literatura nativa no país, o escritor guarani Olívio Jekupé, a escrita se tornou um poderoso instrumento para registrar e valorizar os conhecimentos tradicionais, sem substituí-los. “Hoje [a escrita] é nossa ferramenta de luta. Que a gente e a escola precisam ter, esses livros, esses registros, em português e em Guarani também”, defendeu.
É o que também ressaltou Luiz Ketu, falando da importância da oralidade na transmissão desses conhecimentos agregados ao longo de tanto tempo. Ele, que é um dos autores dos livros Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola e Roça é vida, destacou que o registro desses saberes por meio da escrita foi assumido como uma missão coletiva, por ele e por outros pesquisadores quilombolas, como Márcia Cristina Américo, Viviane Marinho Luiz, Laudessandro Marinho da Silva, que compartilham a autoria com ele e acompanharam o evento.
As duas obras, disponibilizadas ao grande público pela primeira vez n’A Feira do Livro, trazem informações sobre o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) e suas contribuições. Reconhecido em 2018 como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o SATQ consiste em uma série de conhecimentos e práticas tradicionais, que engloba a roça de coivara – um sistema baseado no uso intermitente de pequenas áreas de floresta, com uso para plantação por três anos e períodos de repouso para que o solo e a vegetação se regenerem.
Nesse sistema, os quilombolas do Vale do Ribeira desenvolveram o manejo de cerca de 83 espécies florestais e mais de 70 variedades agrícolas, ajudando a conservar parte dos remanescentes de Mata Atlântica no país. Para isso, todos os anos realizam a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas.
Organizada pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), composto por 19 Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira e parceiros, o evento previsto para agosto chega em sua 15ª edição neste ano, valorizando os saberes tradicionais quilombolas.
Finalizando a conversa, Tatiane Klein destacou a relevância dos autores quilombolas e indígenas compartilharem em seus livros temas tão complexos, mas tão pouco conhecidos e valorizados, como forma de combate de um racismo epistêmico que coloca os saberes de uns em posições diferentes dos saberes de outros.
“Como o Davi Kopenawa sempre fala em seus livros, ele teve que colocar o pensamento dele em ‘peles de papel’ para que chegasse aos não indígenas. E esse não é um movimento que só o Davi vem fazendo. Inúmeras comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas estão fazendo esse esforço para transmitir o que são os modos de vida, para garantir a existência desses modos de vida, a persistência desses modos de vida e acho que a gente só tem a agradecer por estarem fazendo isso“, concluiu.
Na sexta-feira (05/07), o tema volta À Feira do Livro em um bate-papo sobre a obra Diários yanomami: testemunhos da devastação da floresta no Auditório Armando Nogueira. A mesa terá a participação de Darysa Yanomami, Mozarildo Yanomami, Corrado Dalmonego e Hanna Limulja para discutir a obra bilíngue, que é resultado de uma pesquisa intercultural e reúne relatos dos próprios Yanomami sobre os impactos da invasão garimpeira na maior Terra Indígena do Brasil, durante o governo Bolsonaro.
“Brasil indígena, passado e presente”
No domingo (30/06), às 17h30, aconteceu o bate-papo “Brasil indígena, passado e presente”, com a historiadora Luma Prado, do ISA, e a educadora Poty Poran T. Carlos, da Terra Indígena Jaraguá. Na conversa, a educadora do povo Guarani trouxe a importância dos não-indígenas entenderem a sociodiversidade de povos indígenas. “Cada etnia tem um jeito de viver e de ser”, defendeu.
Poty Poran ainda destacou a necessidade de combater as visões estereotipadas dos indígenas. “Se os portugueses não usam mais caravelas, por que indígenas não podem ter acesso à tecnologia, sem deixar de ser indígenas para isso? “, questionou.
Luma Prado, por sua vez, também apontou a problemática de discutir a temática indígena apenas na efeméride do Dia dos Povos Indígenas, em abril. “Precisamos preencher a história do Brasil com a história dos povos indígenas também na sala de aula”, concluiu.
A atividade foi ancorada no livro Povos Indígenas no Brasil Mirim, produzido pelo ISA para o público escolar.