#ElasQueLutam! Mesmo tardia, nomeação no Ministério Público do Estado do Pará é fruto direto da luta coletiva do movimento quilombola
Na contramão da cultura individualista da sociedade moderna, os modos de vida de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) demonstram que as vivências nunca são somente individuais. O que se vive, se vive junto. O que se luta, se luta junto. E o que se conquista, se conquista junto.
O anúncio da nomeação de Karoline Bezerra Maia como Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, “a primeira quilombola promotora de Justiça da história do Brasil”, é evidência disso.
Maranhense, remanescente do Quilombo Jutaí, localizado no município de Monção, Karoline Maia foi aprovada para um dos cargos mais desejados da carreira jurídica aos 34 anos de idade.
Uma conquista improvável aos olhos de parte da sociedade branca descendente daqueles que escravizaram pessoas como os avós de Karoline, ou que até hoje mantêm em suas propriedades trabalhadores em regime análogo à escravidão, como ocorreu com seu pai, Erozino Bezarra Maia, que trabalhou a troco de comida e abrigo.
No entanto, se trata sobretudo de uma conquista real, desejada e muito aguardada pela comunidade quilombola, que há muitos anos vem abrindo caminhos para que esta nomeação fosse possível e, mais do que isso, realizada.
“Maravilhosa! Realização de sonhos e articulações coletivas. Primeira de muitas Promotoras Quilombolas. Você é um arraso, mulher! Inspiração!”, disse a assessora jurídica da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), Rafaela Miranda, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, localizado no município de Iporanga (SP).
“Eu fico emocionada por chegar até onde cheguei. E não quero ser a primeira e única. Eu quero que, a partir deste movimento e toda esta repercussão, venham muitos e muitos mais quilombolas, mulheres, pessoas pretas para que a gente possa, de fato, fazer as instituições mais diversas. Para que, assim, a gente possa ter uma atuação mais eficaz. Que toda esta movimentação possa servir de inspiração para outras meninas pretas, pobres e quilombolas. Não é fácil. Vai ser difícil. Mas é possível”, comemorou Karoline.
Um propósito familiar
Apesar das dificuldades, o pai de Karoline sabia ler e escrever. Ao contrário de sua mãe, Raimunda Bezerra Maia, que não frequentou a escola, integrando a estatística dos quase 10 milhões de brasileiros analfabetos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Meus pais foram muito humildes, muito simples. Minha mãe assinava com a digital. Os pais dela foram escravizados. Ela trabalhava na roça”, recorda Karoline para pontuar que, mesmo sem terem vivenciado a educação regular, os pais fizeram de tudo para que ela frequentasse a escola. “Hoje eu vejo que eu poder estudar foi um propósito ao qual se dedicou a minha família”, avalia.
Isso porque não é um caminho óbvio para a realidade dos quilombolas no Brasil, como é para as famílias brancas de classe média, uma criança frequentar a escola regularmente até a graduação. Por isso, os pais de Karoline enfrentaram dificuldades ao longo da busca da filha pelos estudos.
Uma delas foi o distanciamento do território, a saída do quilombo para a cidade para ter acesso ao direito constitucional da educação – problema real e muito presente no cotidiano dos quilombolas e dos moradores do campo, principalmente dentre os povos e comunidades tradicionais.
No Brasil, existem cerca de seis mil “localidades quilombolas”, conforme grafa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que contabiliza territórios oficialmente reconhecidos, agrupamentos quilombolas, dentre outras denominações. Mas o Censo Escolar mostra que há 2.526 escolas quilombolas em todo o país. Ou seja, menos da metade destas localidades possui unidade de ensino. Os dados são referentes a 2023.
“Para que eu estudasse, passamos por um processo de desterritorialização. Infelizmente, o poder público não tem políticas públicas efetivas para nossa permanência em nossos territórios. No ano passado mesmo, uma escola quilombola foi fechada em minha comunidade. E isso porque estamos falando de ensino fundamental, porque a partir disso não há outra realidade senão a desterritorialização. É ir morar em casa de parente”, diz Karoline Maia.
Não por acaso, relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) aponta que 75% dos quilombolas concluíram o ensino fundamental até 2019, mas apenas 10% completaram o ensino médio até aquele mesmo ano.
Quase desistência
Os pais de Karoline são os personagens centrais da trajetória da promotora. Para que ela estudasse, além de se mudarem para a capital, São Luís, eles também se empenharam para conseguir bolsas de estudos para a filha porbom desempenho escolar, ainda que tivesse de conciliar com trabalhos informais para compor a renda familiar.
“Além de estudar, eu nunca pude deixar de trabalhar. A gente fazia doces para vender na rua, sempre tinha alguma produção em casa que a gente conseguia vender. Meu pai vendia galinha na feira e a gente ia ao Ceasa [Central de Abastecimento] coletar alimentos que o pessoal não conseguiria comercializar, que seriam descartados”, lembra.
E, para garantir a rematrícula e comprar os materiais escolares no início do ano, o Sr. Erozino recorria a empréstimos subsequentes, muito bem calculados para que o próximo ano estivesse assegurado. “O empréstimo terminava em novembro, que era quando ele quitava e fazia outro para garantir as despesas do próximo ano. E assim os anos se seguiam”, conta a promotora.
Quando se formou em 2013, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Karoline foi trabalhar em um escritório de advocacia, mas o trabalho não a completou, assim como os estágios que fez nos Ministérios Públicos Estadual (MPE-MA) e Federal (MPF-MA), que era de onde carregava as melhores memórias de realização profissional.
“[Foi] quando tive contato com ações quilombolas e indígenas. Aquilo tudo ficou em mim. Então eu trabalhava e estudava para concurso, acordando de madrugada e indo dormir bem tarde para conseguir estudar. Mas essa rotina é cansativa. E ainda tem a questão psicológica, porque as reprovações abalam a gente. Então chegou um momento em que eu desisti”, conta.
Foi só durante a pandemia, após o falecimento do pai, que Karoline retomou a rotina de estudos e a coragem para enfrentar os concursos. A mãe já havia falecido quando ela tinha 15 anos de idade em razão de uma complicação pós-cirúrgica. Não a viu formada.
“Meu pai é a minha maior referência, minha grande inspiração. Ele não tinha nada, mas o que tivemos foi ele quem conseguiu. Morávamos numa casa muito precária em São Luís, mas daí ele ganhou no bolão da Quina e pudemos nos mudar para uma casa em melhores condições. Foi tudo isso junto que fez com que eu chegasse até aqui”, remonta Karoline.
Advocacia por necessidade
Mas, ao contrário do que parece, cursar Direito não era um sonho, um desejo de infância. Foi a possibilidade de atuar pela causa quilombola que a fez prestar vestibular e investir nesta carreira.
“Fiz Direito influenciada por lutar. Advogar para a comunidade era um sonho do meu pai. E eu acompanhava desde muito pequena toda a luta do movimento, as discussões nas reuniões que eles me levavam. Então, para mim, aquilo era uma necessidade”, conta.
Karoline se lembra das reuniões da comunidade em torno da titulação definitiva do território. “A primeira reunião foi em 2010 e dali para a frente todas as conversas eram sobre o processo emperrado. Nós sempre ficamos por conta da Defensoria Pública Estadual. Mas as coisas não caminhavam.”
Quando começou a compreender melhor do que se tratava a luta de sua comunidade, ela então decidiu se tornar uma operadora do Direito. E foi no estágio que seus olhos se abriram para a carreira de Promotora de Justiça. “É como se a gente pudesse ter voz, se eu pudesse devolver algo para a minha comunidade.”
Uma conquista coletiva
E não foi só a comunidade de Jutaí que comemorou a nomeação de Karoline para o Ministério Público do Estado do Pará. Ao tomar conhecimento da cerimônia de posse para o cargo de Promotora de Justiça, imediatamente as redes sociais se inundaram de publicações em perfis por todo o País. Era a celebração pela conquista coletiva materializada na conquista individual de Karoline.
Uma destas manifestações foi a de Vercilene Dias, assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
"Mais uma mulher quilombola pioneira. Nossa companheira de luta é a primeira mulher quilombola Promotora de Justiça do país. Quero aqui parabenizá-la e também agradecer pelo esforço para chegar até aqui. Sei que não foram poucos os desafios. E desejar muito sucesso na nova jornada que se inicia. Sua conquista, apesar de tardia, adiada por uma estrutura social e de Estado que nos exclui e invisibiliza, nos traz esperança, esperança para as mais de 6 mil comunidades quilombolas do país. Importante para que outras milhares de mulheres e meninas quilombolas possam sonhar e acreditar que é possível", disse.
Natural do território Kalunga, no Estado de Goiás, Vercilene foi a primeira quilombola a se tornar mestre. Hoje doutoranda, é uma referência não só para Karoline, como para inúmeros outros quilombolas que ocuparam espaços no universo acadêmico brasileiro. “É isso, um caminho, um movimento que vai mudando a estrutura de toda uma sociedade em razão do aquilombar”, aponta Karoline.
Uma prova de como a luta abre caminhos e altera as estruturas da sociedade foi a ação afirmativa do Ministério Público do Pará, o primeiro a garantir cotas para quilombolas e indígenas no concurso para Promotores de Justiça, não por livre e espontânea vontade, mas após uma forte incidência do movimento, especialmente da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), cujos representantes chegaram a ocupar o prédio da instituição pública para pressionar pela garantia do espaço, em conjunto com a Associação dos Discentes Quilombolas da Universidade Federal do Pará, conforme recorda a assessora jurídica da Malungu, Flávia Santos.
Vercilene reforça como todas estas são conquistas de luta do movimento que vêm de seus antepassados. “Luta para que a gente conquistasse um espaço no ensino público, para que fizéssemos uma graduação no ensino público, para que tivéssemos ações afirmativas de permanência na universidade, para que ocupássemos um espaço na carreira pública. Do ponto de vista coletivo, é uma conquista importante. Fico muito feliz de ter atuado nesta luta no coletivo.”
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Ganha a sociedade
Outra conquista que todas estas mulheres sustentam, em uníssono, é que uma composição mais diversa nas instituições públicas, desde as universidades até os órgãos de Justiça, é a garantia da ampliação da efetivação de direitos no país, contemplando toda sua diversidade.
“A chegada da Karoline neste espaço aumenta a perspectiva do que a Conaq já vem reivindicando sobre o sistema de Justiça, que é um olhar mais sensível e mais atento. Porque o sistema de Justiça que temos hoje é composto majoritariamente por homens héteros brancos. Então ela rompe com isso. E é também um olhar sensível a partir da vivência de quem passou por desafios, que saiu de um lugar de vulnerabilidade para ocupar um espaço de decisão. Isso é extremamente importante sob esta perspectiva de vida, sob o olhar de quem vem da base”, defende Vercilene.
E é o que reconhece a promotora. “Não é só a Karoline Maia que se tornou promotora. Mas é o quilombo, é o aquilombar. É ter um representante de nós. É fazer ser ouvido, fazer ser percebido. É demonstrar que todo este movimento não é por acaso, ele tem um motivo, um propósito e está no caminho certo. E que, aos poucos, a gente está quebrando as barreiras para que mais e mais pessoas quilombolas possam chegar a diversos cargos de diversas instituições.”