Três dos principais especialistas em Direito Constitucional do país concordam que não cabe uma “conciliação” sobre o direito indígena à terra
Texto atualizado em 7/9/2024, às 12:00
No último dia 29, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – entidade nacional representativa dessas populações – resolveu se retirar da comissão de “conciliação” sobre o chamado marco temporal da demarcação das terras indígenas. O colegiado foi instituído pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes.
Foi um protesto dos indígenas pelo que consideraram pressões e violações de seus direitos ocorridas nas duas audiências realizadas até agora pela comissão. A próxima está prevista para acontecer nesta segunda (9/9) – sem a sua presença.
Até o início dos trabalhos, em 5 de agosto, os objetivos e as regras do processo não haviam sido informados claramente. Só então, foi comunicado que as decisões poderiam ser tomadas por maioria. O problema é que a Apib era minoria, com só seis representantes, de um total de 24.
A entidade também ficou sabendo que, se decidisse não participar das atividades, poderia ser substituída pela Fundação Nacional Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério do Povos Indígenas (MPI), o que vai contra a Constituição. A Carta de 1988 assegura aos povos originários o direito de acionar a justiça de forma autônoma.
Ato contínuo, parlamentares ruralistas que participam da instância de mediação sugeriram substituir a Apib por outras organizações indígenas menos representativas.
Mendes é relator das ações que questionam a Lei 14.701/2023, que prevê o marco temporal e foi aprovada pelo Congresso em retaliação à declaração do STF de inconstitucionalidade dessa interpretação jurídica ruralista, em setembro de 2023. A Apib é uma das autoras das ações, parte envolvida diretamente.
Segundo o marco temporal só teriam direito às suas terras os povos originários que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar as demarcações por questionamentos administrativos ou judiciais.
Três dos maiores especialistas em Direito Constitucional do país ouvidos pela reportagem do Instituto Socioambiental (ISA) avaliam que a decisão de criar a comissão, seu funcionamento até agora e sua continuidade sem os indígenas – todas determinações de Mendes –, são legalmente incabíveis.
Leia abaixo os principais trechos das entrevistas com os professores Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Marcelo Neves, da Universidade de Brasília (UnB) (saiba mais sobre os três juristas no quadro ao final do texto).
Decisão de conciliar
Os três juristas defendem unanimamente ser descabida uma conciliação nesse caso, entre outras razões, porque o STF tomou recentemente uma decisão sobre o assunto e porque estão em jogo direitos fundamentais e de minorias, como o direito à terra dos povos originários previsto na Constituição.
“Desde o primeiro momento, manifestei minha perplexidade, pois, tendo o Supremo declarado a inconstitucionalidade do marco temporal, não há porque engajar-se em um processo de conciliação em que necessariamente a flexibilização dos direitos indígenas está em pauta”, opina Oscar Vilhena.
Marcelo Neves acredita que, antes da decisão do ano passado, em tese um instrumento de mediação poderia ser usado, mas não depois dela. “Na medida em que, não só numa interpretação de juristas, mas o próprio órgão oficial, que decide vinculantemente, determinou que a Constituição estabelece esse direito [indígena à terra], direito fundamental ou direito de minorias, qualquer que seja o uso, evidentemente não cabe conciliação”, aponta.
Daniel Sarmento ressalta que o problema não é simplesmente a possibilidade de o STF mudar de posição, já que a jurisprudência do próprio tribunal prevê situações como essa. “É possível que o Supremo decida uma coisa e, tempos depois, o Congresso decida num outro caminho, numa outra direção, e o Supremo seja forçado a reexaminar e mude de ideia? É possível”, explica.
“Agora, isso pressuporia o quê? Que nesse ínterim tivesse passado um tempo, os fatos tivessem mudado, tivesse mudado alguma questão nos valores, nos direitos etc. Só que a lei que estabeleceu o marco temporal foi literalmente aprovada no mesmo dia em que o STF terminou o julgamento do marco temporal. Então, óbvio que não houve uma mudança. O que houve foi uma reação de uma maioria contra o Supremo defendendo os direitos de uma minoria”, comenta.
O professor da UERJ entende que processos de mediação são instrumentos positivos e bem-vindos para dirimir conflitos judiciais, mas não podem ser aplicados indiscriminadamente. “Pela própria Constituição, os direitos territoriais indígenas são indisponíveis e não admitem nenhum tipo de conciliação, renúncia, nada desse gênero.”
Neves critica ainda o fato de Gilmar Mendes ter instituído a conciliação de forma monocrática (unilateral), sem levar o assunto ao plenário da Corte e desconsiderando a manifestação coletiva dos ministros do ano passado. “[É] uma postura de desrespeito em relação ao próprio órgão que tomou a decisão”, afirma.
Regras Polêmicas
Os três especialistas também concordam que as regras dos trabalhos impostas por Mendes, como decisões por votação e a continuidade das atividades sem a Apib, também não têm consistência jurídica.
“Me parece esdrúxulo essa solução de uma decisão por maioria. Porque uma decisão por maioria implica que o processo não é conciliatório. É um processo decisório de caráter político, de certa maneira, na medida em que vai se discutir qual a maioria prevalece”, argumenta Neves.
Ele também defende que a possibilidade de substituição da Apib nas atividades pela Funai, o MPI ou outra organização indígena seria uma afronta aos direitos dos povos originários.
“Um órgão oficial não pode substituir uma entidade representativa dos interesses dos povos indígenas, quer dizer, não tem nenhum sentido essa substituição. A escolha de outra entidade [indígena] é complicada, porque o próprio Supremo reconhece a Apib como instituição que é representativa dos povos indígenas”, lembra. “Me parece que esse é um casuísmo, evidentemente para enfraquecer a demanda dos povos indígenas pela afirmação dos seus direitos”, critica.
Continuidade da conciliação
Neves é categórico ao afirmar que a saída dos indígenas inviabiliza a comissão. “Me parece que essa conciliação se torna totalmente inconstitucional e ilegal, de forma definitiva”, sentencia. “Acho que é totalmente absurda a continuidade dessa comissão, sem a disposição dos povos indígenas de conciliar nos termos estabelecidos pelo ministro Gilmar Mendes, à luz de uma lei que contraria o direito fundamental dos indígenas às suas terras”, continua.
Ele acredita ainda que as normas de funcionamento da mediação vão contra a própria ideia de conciliação. “Nesse contexto da linguagem do voto da maioria e de outras nuances que se apresentam dentro da comissão, ela não tem sequer o caráter conciliatório”, ressalta.
Sarmento vai na mesma direção: “[Nesse caso] você não pode conciliar por uma questão até de definição – sem que o titular do direito aceite o procedimento de conciliação”.Para ele, não há base legal para uma “conciliação contra a vontade do titular do direito, o que é inadmissível em qualquer conciliação”.
Condução do processo
Os indígenas criticaram duramente a atuação do juiz auxiliar indicado por Mendes para conduzir os trabalhos, Diego Viegas Veras. Para a Apib, ele impôs condições “inaceitáveis” ao debate. Os juristas ouvidos pelo ISA também contestam a postura de Veras.
“Processos de conciliação pressupõem engajamento e confiança das partes. Infelizmente, o juiz responsável não tem sido capaz de demonstrar a imparcialidade necessária para conduzir um processo como esse”, critica Vilhena.
“Acho que a Apib tem sido desprezada. Muitas vezes, em algumas posições dos juízes auxiliares, de certa maneira tem sido humilhada nessa comissão. Me parece que de alguma forma vem sendo tratada em linguagem tutelar”, corrobora Neves.
Proteção de minorias
Os três especialistas chamam atenção para o fato, desconhecido ou não entendido por muitas pessoas, de que a proteção dos direitos de minorias é uma das principais funções das cortes constitucionais, como o STF. Eles reforçam que esse é exatamente o caso dos povos originários no Brasil.
“É tudo heterodoxo e perigoso. O papel do Supremo nessa matéria, à luz do que dispõe a Constituição, é proteger direitos fundamentais do grupo vulnerabilizado”, explica Sarmento. “Você não pode conciliar quando você está discutindo direitos de grupos minoritários”, acrescenta.
Tanto ele quanto Marcelo Neves admitem que a conciliação e como ela se deu até agora colocam em xeque esse papel contramajoritário da Corte.
“[Nesse caso, o STF] renuncia ao seu poder de determinar quais são os direitos fundamentais e os direitos das minorias em casos concretos, como esse específico referente aos povos indígenas”, diz Neves.
O acadêmico da UnB entende que, mesmo que o resultado da conciliação tenha de ser homologado pelo plenário do Supremo, como justifica Mendes, essa atribuição da corte fica ameaçada. “O Supremo retira-se de suas funções, em nome de um modelo negocial que é problemático quando se trata de direitos fundamentais ou direito de minoria já afirmado concretamente, não abstratamente, numa decisão judicial [anterior]”, preconiza.
Conciliação sobre outros temas
Na segunda audiência da comissão de conciliação, no dia 29, falando em nome de Gilmar Mendes, o juiz auxiliar disse que não há disposição do STF para mudar sua posição sobre o marco temporal. Portanto, a comissão deveria discutir outros assuntos, como formas de viabilizar a indenização de produtores rurais com áreas em terras indígenas.
Questionado pela reportagem se seria adequado seguir com a conciliação com esse enfoque, Neves entende que não: “Acho que essa lei [do marco temporal], ao pretender reverter uma decisão judicial, ela tem uma característica de inconstitucionalidade que contamina todos os dispositivos em geral. Porque o núcleo é inconstitucional. Se você tirar esse núcleo, que é a reafirmação do marco temporal, os outros dispositivos perdem o seu sentido prático”.
O que o STF deveria fazer?
Considerando a decisão anterior do STF, os três acadêmicos também defendem que o tribunal paute o tema no plenário e igualmente declare a Lei 14.701 inconstitucional. Vilhena e Neves enfatizam que a Corte deveria atender o pedido da Apib para suspender a norma liminarmente até o julgamento de mérito.
“As críticas do movimento indígena são absolutamente pertinentes, a começar pela questão da suspensão da lei que reintroduziu o marco temporal. Se essa tese é inconstitucional, como pode sobreviver uma lei que o restabelece? Não faz sentido”, questiona Vilhena.
“Já havia uma decisão do Supremo Tribunal Federal, definindo que o marco temporal é contrário à Constituição. O que cabe agora é a execução dessa decisão, de acordo com a Constituição e com a decisão do próprio Supremo”, reforça Neves.
E o Congresso?
Marcelo Neves aposta que, se houver algum papel do Congresso no debate, seria viabilizar a determinação do Supremo do ano passado. “Poderia o próprio legislador esclarecer como seria implementada a superação do marco temporal, como seriam implementadas essas medidas”, aponta.
Ao contrário disso, no entanto, ruralistas e bolsonaristas ameaçam aprovar no Congresso um projeto que inclui na Constituição a tese contrária às demarcações como forma de pressionar o tribunal e os indígenas.
Veras chegou a reproduzir um áudio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), informando que há um acordo “entre os poderes” para que a proposta não avance na Casa até o fim da conciliação no STF. O gesto do juiz foi visto pelos indígenas como uma ameaça: se não aceitassem participar do colegiado, sofreriam mais uma derrota no Congresso.
Daniel Sarmento lembra que, se o projeto for aprovado, o STF deverá analisá-lo à luz de sua decisão anterior. “O próprio Supremo já disse mais de uma vez que os direitos dos povos indígenas são cláusulas pétreas. Então, inclusive, se houver uma PEC alterando significativamente esses direitos para restringi-los, o papel do Supremo também seria o de invalidar essa PEC, a partir da perspectiva de que cláusula pétrea é limite até pra emenda constitucional”, contrapõe.
O que pode acontecer agora?
Diante da determinação de Mendes de seguir com a conciliação mesmo sem a Apib, os três acadêmicos sinalizam que a entidade não tem outra alternativa a não ser apelar ao próprio STF.
“[A Apib] poderia entrar com um tipo de petição ou ação perante o Supremo Tribunal Federal, para que essa comissão de conciliação seja suspensa ou extinta, na medida em que os indígenas não estão dispostos a participar da conciliação nesses termos”, aposta Neves.
“Nós poderíamos ter, pela maioria do Supremo, uma decisão que afastasse a decisão monocrática do ministro Gilmar. Esse seria o caminho, principalmente com argumentos como a [questão da] decisão por maioria e também a ausência da Apib do processo de conciliação”, finaliza.
Quem são os três juristas?
Oscar Vilhena Vieira é professor fundador e atualmente diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP). É mestre em Direito pela Universidade de Colúmbia-Nova York, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pelo Centre for Brazilian Studies - St. Antonies College, da Universidade de Oxford. Entre suas obras mais recentes estão: A Constituição e sua reserva de justiça (2023), A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional (2018) e Direitos Fundamentais – uma leitura da jurisprudência do STF (2017).
Daniel Antônio de Moraes Sarmento é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É bacharel, mestre e doutor em Direito Constitucional pela mesma instituição. Fez pós-doutorado na Yale University, Estados Unidos. Foi procurador da República de 1995 a 2014. É autor de inúmeros artigos e livros, entre eles Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (2012) e Direitos, Democracia e República (2017).
Marcelo da Costa Pinto Neves é professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília (UnB). É mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Direito pela Universidade de Bremen. Tem pós-doutorado pela Faculdade de Ciência Jurídica da Universidade de Frankfurt e pelo Departamento de Direito da London School of Economics and Political Science. É autor de dezenas de obras, entre elas Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras como Diferença Paradoxal do Sistema Jurídico (2013) e Transconstitucionalismo (2009).