Neri da Silva foi assassinado em uma das comunidades da TI Ñanderu Marangatu, alvo de ataques desde a semana passada; organizações indígenas pedem medidas urgentes para conter violações de direitos humanos
* Com colaboração de Mariana Soares
Uma crescente onda de violência e violações de direitos humanos tem impactado, nos últimos dois meses, comunidades do povo Guarani em Mato Grosso do Sul e Oeste do Paraná. A gravidade da situação já levou duas comitivas da sociedade civil a percorrer os territórios afetados, mas, mesmo com acompanhamento de organizações indigenistas, de direitos humanos e autoridades públicas, as comunidades seguem sofrendo ataques.
Na manhã desta quarta-feira (18/09), o jovem indígena Neri da Silva, de 22 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça durante um ataque da Polícia Militar (PM) contra uma das comunidades da Terra Indígena Ñanderu Marangatu, em Antônio João (MS). Já são pelo menos quatro indígenas assassinados na busca por reconhecimento dessa Terra Indígena. Segundo as lideranças indígenas, que registraram a ação em vídeo, o tiroteio começou por volta das 6h da manhã, após a chegada do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (PMMS) à área indígena. “A comunidade está pedindo socorro e mais socorro e, infelizmente, não conseguiu nenhuma segurança. Teve muitas violências por parte dos policiais”, testemunhou uma das lideranças guarani kaiowá, que preferiu não se identificar.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a PM teria arrastado o corpo de Neri para um pedaço de mata, impedindo os Guarani e Kaiowá de se aproximarem. Segundo os indígenas, a Força Nacional e a Polícia Federal (PF) não acompanharam a perícia do local do crime; eles ainda relatam que pistoleiros estariam junto com a polícia durante o ataque contra a comunidade. Conforme a reportagem, a PF foi acionada para retirar o corpo do jovem. Uma mulher também teve a perna atingida por disparos de arma de fogo e os barracos da retomada foram destruídos.
O assassinato aconteceu um dia após o Conselho da Aty Guasu, organização representativa dos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva em Mato Grosso do Sul, protocolar um pedido de providências urgentes ao Ministério da Justiça na área, incluindo que a Força Nacional ficasse baseada na área atacada. Já na semana passada, a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) havia protocolado uma manifestação sobre a possibilidade de massacre no Supremo Tribunal Federal (STF) e a Kuñangue Aty Guasu, assembleia das mulheres guarani kaiowá, publicado uma carta com o pedido de socorro da comunidade de Ñanderu Marangatu.
Assista ao vídeo:
A Apib tem levado a grave situação de violência contra os Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul ao conhecimento do STF por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Maurício Terena, assessor jurídico da organização, afirmou que, nos últimos dois meses, a Apib vem informando o ministro Gilmar Mendes sobre a escalada de ataques, mas até o momento não houve qualquer despacho ou decisão sobre o caso.
“Muitos indígenas Guarani Kaiowá já foram mortos em conflitos", ressaltou Terena, enfatizando que a falta de posicionamento do STF tem agravado a violência contra os povos indígenas. “Hoje a gente vai ter um despacho com o ministro Gilmar Mendes para levar ao conhecimento do ministro relator esse último ataque e destacar a importância dele tomar algum posicionamento", concluiu.
O mais recente episódio de violência havia se iniciado em 12 de setembro, após os indígenas guarani kaiowá reocuparem parte da TI, sobreposta pela Fazenda Barra, dentro da área homologada pela presidência da República. Durante a ação, a comunidade foi violentamente atacada pela Polícia Militar (PM), deixando pelo menos três pessoas feridas – uma mulher e dois homens, um dos quais segue internado no hospital municipal.
A tensão continuou e, na sexta-feira (13/9), nem a presença da Força Nacional ou da missão de direitos humanos organizada pelo Coletivo de Solidariedade e Compromisso com os Povos Guarani foi suficiente para prevenir que a comunidade sofresse uma nova tentativa de expulsão e continuasse cercada pelas forças policiais.
Apesar da violência registrada, a Justiça Federal de Ponta Porã, em uma decisão controversa e expedida na noite do dia 12 de setembro, autorizou a atuação da Polícia Militar estadual em defesa da propriedade privada, legitimando a repressão policial contra a comunidade indígena – mesmo sem ordem de ação de reintegração de posse.
Segundo informações do Cimi, a advogada da ação é Luana Ruiz, que, além de filha dos proprietários da Fazenda Barra, é assessora da Casa Civil do governo de Mato Grosso do Sul. Nesta semana, a decisão foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
Anulada pelo STF logo após sua homologação em 2005, a TI Ñanderu Marangatu é ocupada tradicionalmente por 1349 pessoas (IBGE, 2022) do povo Guarani Kaiowá, que vivem espalhadas por 12 aldeias, além da aldeia retomada mais recentemente. “Esses 9.317 hectares é aldeia, já é reconhecido, mas mesmo assim a comunidade está sofrendo violência e mais violência no tekoha Ñanderu Marangatu”, lembrou, indignada, a liderança guarani kaiowá.
Em 2015, a mobilização indígena pela recuperação de suas terras já havia resultado em um ataque coordenado por fazendeiros, apoiados por políticos locais, que culminou na morte a tiros da liderança Simião Vilhalva.
Uma série de outras lideranças foram assassinadas no local, como Dorvalino Rocha, em dezembro de 2005, Dom Quitito, em 2000, e Marçal Tupã’i, em 1983: “Muita gente já morreu e sua morte vem sendo em vão”, testemunhou outra liderança da área, em entrevista ao documentário Tempo de Guavira.
Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), critica a suspensão prolongada dos processos de demarcação no STF, muitas vezes paralisados por anos com base em argumentos unilaterais de fazendeiros. Ela ressalta que essa paralisação ignora a presunção de legalidade, legitimidade e veracidade dos processos administrativos de demarcação.
"Para suspender um ato presidencial, como um decreto de homologação, é necessário apresentar provas robustas contra a demarcação; do contrário, trata-se de uma ingerência indevida do Poder Judiciário em atos legítimos do Executivo", afirmou Batista. Segundo a advogada, a demora do STF aumenta a insegurança jurídica, os conflitos e a vulnerabilidade dos povos indígenas. "O STF não pode se eximir de decidir e deixar os indígenas desprotegidos, expostos à violência armada do estado e de milícias", concluiu.
“A gente precisa de água”
Outra Terra Indígena do povo Guarani Kaiowá também segue em situação crítica, sob ameaças e intimidações cotidianas de fazendeiros desde julho deste ano: a TI Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS). No final da semana passada, a comunidade se organizou para, em menos de um mês, receber a segunda visita de uma comitiva de direitos humanos na aldeia Yvyajere.
A primeira visita havia acontecido já no final de agosto, quando 15 organizações da sociedade civil e do sistema de justiça, lideradas pela Apib, estiveram na comunidade, registrando relatos angustiantes sobre a escalada de violência que já ameaçava a sobrevivência da comunidade guarani kaiowá.
Na ocasião, lideranças comunitárias e a Aty Guasu denunciaram, entre outras violações, o envenenamento da nascente de água que abastecia a comunidade, levando à morte de animais. O problema segue sem solução.
“Não melhorou não. Ainda a gente precisa de água, estamos necessitando de água mesmo”, disse Guarahy Kaiowa*, uma das lideranças de Panambi, que preferiu não se identificar. A liderança relata que equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) chegaram a coletar amostras de água e que representantes do governo estadual se comprometeram com o fornecimento de água potável à comunidade, que vive em terra delimitada pela Funai desde 2011, com 12.196 hectares. Saiba mais.
“Estão envenenando a nascente da água, matando peixes, cobras, e até crianças estão sendo hospitalizadas. É desesperador, a gente não sabe mais o que fazer. Estamos sendo tratados como invasores em nossa própria terra, quando, na verdade, é esse território que sempre foi nosso”, denunciou a liderança durante a presença da comitiva.
Outra denúncia dos indígenas se refere aos ataques e intimidações feitas por um acampamento de fazendeiros e arrendatários, instalado a poucos metros da aldeia. Ainda que tenha sido recentemente afastado, graças à atuação da Força Nacional, as lideranças indígenas reiteram que as ameaças continuam. “A gente insistiu pra eles mandarem o não indígena embora. Eles estão querendo plantar e nós, comunidade, não vamos deixar plantar, porque se plantar eles vão jogar agrotóxico”, afirmou Guarahy.
Durante a visita, outra liderança, Ava Poty Ju*, já havia destacado o impacto contínuo dos agrotóxicos na saúde dos moradores: "Muitos me perguntam por que estou usando óculos; é por causa do veneno. O veneno estragou meus olhos quando eu era criança. A gente estava morando na retomada, e o avião passava em cima, e eu olhava porque não sabia que o veneno caía tudo sobre nós”.
Maurício Terena, advogado da Apib, expressou indignação: "Quando vemos a violência, as balas e os tiros, é sempre um corpo indígena que é atingido. Tenho a certeza que só a nossa união, a nossa luta, vai fortalecer tanto o povo Kaiowá quanto construir uma alternativa possível para esse cenário de injustiça”. A situação levou a organização indígena demandar medidas emergenciais em favor dos indígenas e motivou também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a oficiar o governo do estado de Mato Grosso do Sul.
A falta de providências e a longa espera pela finalização da demarcação deixa um lastro de perdas, como lembra Zelão*, outra das lideranças da comunidade: “Essa luta aqui não foi fácil desde o início, antes de eu nascer. Alguns velhos já estão embaixo da terra esperando seus bisnetos lá no céu, e ainda estamos aqui acampados”. Recentemente, a comunidade perdeu mais uma de suas lideranças tradicionais, a anciã Neusa Concianza Jorge, vítima de complicações de um acidente vascular cerebral.
A visita da comitiva jurídica reforçou o apelo urgente por justiça. “Queremos que levem nossas vozes para Brasília, para os centros de poder. A nossa luta é pela vida, pela dignidade, e pela sobrevivência das futuras gerações Guarani Kaiowá”, concluiu Zelão.
No Paraná, cerco contra os Avá-Guarani
No Oeste do Paraná, a situação dos Avá Guarani segue o mesmo padrão. Também visitadas pela missão de direitos humanos do Coletivo de Solidariedade e Compromisso com os Povos Guarani, que reuniu mais de 20 organizações governamentais e não governamentais, três aldeias da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, nos municípios de Guaíra e Terra Roxa (PR), também vivem sob constante ameaça de fazendeiros e jagunços.
“Tem sido muito tenso esses últimos dias porque sempre tem tentativas de ataques”, relata uma das lideranças da região sobre os ataques e episódios recentes de violência na aldeia Y’Hovy, que deixaram ao menos sete pessoas feridas com armas de chumbo, na madrugada do dia 28 de agosto, segundo informações da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). Também foram feitos relatos de um novo ataque em uma outra área próxima, a aldeia Jevy, onde fazendeiros colocaram fogo em uma área de mata perto da aldeia.
Segundo a CGY, a situação começou na tarde do dia anterior, quando não indígenas começaram a construir roças e barracos nas imediações da aldeia Y’Hovy. Ao longo do dia, a área foi cercada e os ocupantes passaram a estourar fogos de artifício e fazer disparos em direção à comunidade. A Força Nacional, que teve sua atuação mantida na região por uma nova portaria no dia 12/08, não foi capaz de conter a escalada de agressões.
A Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, com cerca de 24 mil hectares já reconhecidos pela Funai, é alvo constante de violências e da negação de direitos básicos a sua população. Em muitos casos, os próprios governantes e atores locais são responsáveis pela continuidade das violações. Em dois dos episódios recentes, o próprio governador do PR, Ratinho Jr., afirmou em vídeo: “Nós não vamos admitir que índios paraguaios invadam terras privadas aqui no Paraná”.
Foi a partir da Era Vargas, na década de 1930, que os indígenas passaram a ter suas terras invadidas e sofreram remoções forçadas para reservas indígenas no estado vizinho, Mato Grosso do Sul; nos anos 1970, a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu deu continuidade ao esbulho territorial e às graves violações de direitos humanos dos indígenas que vivem no Oeste do Paraná. Saiba mais.
As violações contra os direitos territoriais indígenas, tanto em Mato Grosso do Sul quanto no Paraná, são antigas e demonstram a omissão do Estado brasileiro em proteger os povos originários. Já em finais de 2023, as comunidades avá-guarani passaram a sofrer diversas agressões por grupos de fazendeiros locais, reforçando as situações de violência, esbulho e racismo que vivenciam há décadas, como registra um relatório publicado pela CGY em 2017.
Em janeiro de 2024, novos ataques deixaram quatro pessoas feridas e, nos últimos meses, uma ordem de despejo, emitida pelo mesmo juiz que proibiu a Funai de prestar assistência às comunidades, intensificou a escalada de violência. “A decisão causa espanto pois nega aos indígenas o mínimo existencial, o que viola direitos fundamentais básicos”, destacou Juliana de Paula Batista, advogada do ISA.
A visita da missão composta pela sociedade civil destacou a urgência na demarcação do território. Nas palavras de uma das lideranças indígenas presentes, durante a visita: “O que nós estamos fazendo hoje é usar nosso próprio corpo de escudo para defender o nosso território ancestral, porque aqui existem histórias, aqui tem corpos enterrados, e essa terra é manchada pelo sangue Guarani. Nós pertencemos a esse território tanto quanto esse território pertence a nós”.
[Com informações da Comissão Guarani Yvyrupa e do Conselho Indigenista Missionário]
O ISA se solidariza com os indígenas e espera que o Estado brasileiro e o STF ajam de forma rápida e eficiente para resolver os graves conflitos territoriais envolvendo povos indígenas em diversas regiões do país e, principalmente, que os três poderes tomem medidas que resguardem as vidas e a integridade física dos indígenas.