Lideranças femininas indígenas promovem o diálogo entre saberes tradicionais e direitos legais, ampliando redes de apoio e proteção em suas comunidades
Entre os dias 11 e 13 de novembro, o segundo módulo do Promotoras Legais Populares Indígenas reuniu cerca de 80 lideranças femininas das cinco coordenadorias regionais da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da sede do município de São Gabriel da Cachoeira para discutir os direitos das mulheres em conexão com as culturas locais. O objetivo principal foi auxiliá-las para replicar esses conhecimentos em suas comunidades e organizações de base e promover o enfrentamento à violência de gênero, em especial a praticada contra as mulheres.
A iniciativa, promovida pelo Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN/Foirn) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM) da Universidade Federal do Amazonas, combina os conhecimentos jurídicos com os saberes e práticas indígenas, considerando tanto a realidade das mulheres nas comunidades quanto no contexto urbano.
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Dulce Morais, antropóloga e assessora de gênero do ISA, explica que o primeiro módulo, realizado no segundo semestre de 2021, após período mais intenso da pandemia de Covid-19, buscou detalhar informações sobre direitos das mulheres e ferramentas jurídicas destinadas à sua proteção, e também ajudou a identificar as estratégias coletivas associadas ao sistema de conhecimentos, cuidados e práticas rionegrinas de prevenção e enfrentamento às violências contra as mulheres, jovens e crianças.
O segundo módulo seguiu a mesma proposta e o início da programação foi dedicado ao resgate de diversas ações de enfrentamento realizadas no Rio Negro desde o ano de 2018. Carla Dias, antropóloga do ISA foi uma das organizadoras da formação e conta que os momentos de trocas coletivas proporcionam o compartilhamento de experiências individuais e a construção conjunta de estratégias de cuidado e acolhimento, fundamentadas nos modos de vida, práticas e conhecimentos indígenas de cada povo e região de atuação da Foirn.
“Foi uma oportunidade também para fortalecer as redes de apoio e parcerias nos cuidados de prevenção e enfrentamento às violências contra as mulheres rionegrinas”, destacou.
Elizângela Costa, liderança Baré e também organizadora da atividade, ressaltou a importância de unir o conhecimento das leis ocidentais, os serviços do Estado e os saberes tradicionais no enfrentamento à violência contra mulheres indígenas. “Hoje, vivemos nesses dois mundos: o tradicional e o contemporâneo. Para continuar existindo nesses dois espaços, precisamos caminhar com esses dois saberes”, afirmou.
Segundo ela, é necessário produzir um entendimento e nomear as violências. “Muitas vezes, dizemos que não sofremos violência porque achamos que é algo cultural. Mas sempre reforço: cultura não é violência. Precisamos saber o que é cultura e também identificar o que é violência”, destaca.
Fortalecer práticas locais, como a valorização da língua materna, das práticas de alimentação saudável, benzimentos e o uso de plantas medicinais e a retomada do benzimento pelas famílias foram estratégias mencionadas pelos grupos durante o mapeamento de redes de apoio e estratégias de cuidado e acolhimento, aliado a presença e atuação de estruturas como Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), Centro de Atenção Psicossocial (Caps), hospital, delegacia e as organizações sociais presentes nos territórios.
Natália Farias, doutoranda do núcleo de pesquisas da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, contribuiu com a apresentação dos serviços públicos de saúde oferecidos na sede municipal de São Gabriel da Cachoeria, especialmente, para casos de violência sexual.
Renata Vieira, advogada do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), apresentou juntamente com Mayitê Fontes Ambrósio, advogada do corpo técnico da Foirn, informações sobre as leis brasileiras que garantem direitos e proteção às mulheres e os serviços públicos disponíveis para sua proteção.
“É importante que as mulheres conheçam seus direitos, bem como as políticas públicas que o Estado oferece, para poderem reivindicar direitos e exigir políticas específicas para a sua realidade, mas sabemos que há limites tanto da perspectiva legal, quanto dos serviços públicos ofertados, que em sua maioria são inadequados para as especificidades socioculturais e geográficas das mulheres indígenas que vivem na Amazônia. Por isso, é importante que elas se utilizem dos próprios conhecimentos e fortaleçam as redes de apoio locais e familiares para o combate à violência dentro dos seus territórios”, afirmou Renata.
No último dia do encontro, por meio da atividade de estudo de casos fictícios, baseados em situações reais, as participantes, divididas em grupos, identificaram os tipos de violência ou vulnerabilidades enfrentadas pelas personagens e discutiram como agir diante dessas situações. “Elas puderam exercitar a combinação de práticas locais com os serviços e políticas públicas disponíveis para o manejo das situações, uma potente produção coletiva para as participantes”, finalizou Carla.
Flavia Melo, coordenadora do Observatório da Violência de Gênero do Amazonas (OVGAM) apresentou, de forma dialogada com as participantes, o trabalho de pesquisa “Tecendo a Vida sob Braços Fortes: caracterização da violência contra mulheres na cidade de São Gabriel da Cachoeira”, realizado no âmbito desta parceria interinstitucional, que traz um compilado de dados e análises de boletins de ocorrência com vítimas mulheres coletados na delegacia de São Gabriel da Cachoeira entre os anos 2010 e 2019.
Segundo Flávia, “os números são uma importante ferramenta de incidência política, seja para dar mais visibilidade à violência contra mulheres, para induzir políticas públicas específicas ou para informar o controle social”.
José Miguel Olivar, pesquisador e parceiro desde o início das iniciativas de cuidados com as violências de gênero no Rio Negro destacou que “a partir desses encontros, tem sido possível perceber a troca de informações, de afetos e de compreensões sobre a violência. Esse processo tem ajudado na ampliação e fortalecimento dessas redes de cuidado e luta política”, comentou.
O exercício de fazer o mapeamento georreferenciado das comunidades e bairros de origem das participantes evidenciou a extensa distribuição geográfica da rede de mulheres rionegrinas conectadas à agenda de prevenção e enfrentamento à violência de gênero. O mapeamento geográfico das participantes subsidia a organização dos demais módulos da trilha formativa do Promotoras Legais Populares Indígenas do Rio Negro e o acompanhamento do potencial multiplicador da iniciativa.
Rede de multiplicadoras
Uma das representantes da região do Médio e Baixo Rio Negro (Caimbrn), Carlinha Yanomami, da comunidade de Maturacá, na Terra Indígena Yanomami no Amazonas, disse estar empolgada com a participação na oficina e que o conhecimento adquirido é de grande importância para elas.
“Nós, mulheres Yanomami, muitas vezes não conhecemos bem nossos direitos. Se estão machucando nós pelo psicológico ou pelo físico, então oficinas como essa, com certeza, vão contribuir muito para nos ajudar. O que a gente aprende, o que a gente tem de conhecimento, a gente compartilha com as que ficaram (nas aldeias)”.
Pedrina Gonçalves Gaspar, Baré, representante da região do Alto Rio Negro e Xié (Caibarnx), conta que o que mais ela achou importante foi poder entender questões sobre os direitos das mulheres. “A gente sabia de algumas coisas, mas não de tudo. Aqui, algumas dúvidas foram esclarecidas. Poder vir, ouvir e levar esse conhecimento para outras mulheres, para nossas associações. Trabalhamos com associações de homens e mulheres, e achei fundamental participar para aprender sobre nossos direitos e repassar às mulheres na base”.
Ivaneide Júlio Galdêncio, do povo Baré, vive no município de Santa Isabel do Rio Negro e conta que nunca tinha escutado sobre outros tipos de violência e que o encontro foi importante para que ela aprendesse a identificar e, assim, também levar o conhecimento a outras mulheres, nas reuniões da associação, nas comunidades: “às vezes, nós sofremos [violências] e nem percebemos. Pensamos que violência é só apanhar, levar soco. Mas vai além. Às vezes, os homens falam palavrão, tratam mal e nem percebemos que isso também é uma forma de violência, né”.
“Lugar de mulher é onde ela quiser”
Após o encerramento da oficina, a programação seguiu com a IX Assembleia Geral Eletiva de Mulheres do Rio Negro, que reelegeu Cleocimara Reis para dar continuidade aos trabalhos realizados nos últimos dois anos a frente do Departamento de Mulheres.
Cleocimara Reis recebeu 44 votos, do total de 55 das representantes votantes das Coordenadorias Regionais da Foirn. Ela agradeceu, emocionada, e falou do desafio de representar as mulheres de 23 povos das 750 comunidades indígenas da região, distribuídas em três municípios - São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.
Em sua fala, destacou a importância de enfrentarem, juntas, os desafios e fortalecer a luta coletiva. “Que a gente possa fazer o nosso movimento de mulheres de verdade. Que a gente possa se apoiar para a gente ter a equidade de gênero que a gente fala tanto. A gente acompanha o sofrimento e a luta de cada mulher, seja jovem, criança, adolescente, adulta ou idosa. Precisamos trabalhar contra as desigualdades e a favor da nossa força coletiva”, reforçou a liderança.
Cleocimara Reis também destacou a importância e necessidade de fortalecer as parcerias com setores governamentais e parceiros da sociedade civil organizada, haja vistas que os desafios do DMIRN são muitos e complexos, exigindo assim um trabalho a muitas mãos.
A cerimônia foi encerrada pelas mulheres indígenas rionegrinas com festa e renovação do esperançar. Reunidas, as representantes de cada Coordenadoria Regional ofertaram presentes, como colares e cuias a Cleocimara, e entoaram cantos nas línguas indígenas, com mensagens fortes de agradecimentos, felicitações e desejos de uma boa gestão para os próximos quatro anos. “E como a gente sempre fala, lugar de mulher é onde ela quiser. Muito obrigada”, finalizou a coordenadora reeleita do DMIRN.
O segundo módulo de formação do Promotoras Legais Populares Indígenas e a IX Assembleia Eletiva do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro foram produzidos com apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), da Nia Tero e da Google. As opiniões expressas na reportagem não refletem necessariamente as opiniões dos parceiros apoiadores.