Puxado principalmente por Colômbia e Brasil, movimento buscava reparação e reconhecimento com inclusão nominal em documentos oficiais
Em decisão inédita na COP16 da Biodiversidade, em Cali, Colômbia, afrodescendentes da América Latina e Caribe celebraram conquista histórica de serem incluídos nominalmente nos documentos oficiais da Convenção. A reivindicação tinha como finalidade alterar o artigo 8(j), que indicava aos países e governos considerar e promover os conhecimentos tradicionais de “povos indígenas e comunidades locais” para a conservação da biodiversidade.
Para esses povos, a inclusão do termo “afrodescendentes” no documento final da COP16 e do Quadro Global da Biodiversidade (Global Biodiversity Framework - GBF), era, além de reconhecimento, uma forma de reparação histórica.
“É mais do que justo que o mundo reconheça nesta Convenção de Biodiversidade os aportes importantes, culturais e definitivos da presença da diáspora e da descendência africana no continente como um eixo global, não como um eixo casual”, afirmou a ministra do Meio Ambiente da Colômbia, e também presidente da Convenção, Susana Muhamad, no primeiro Fórum Internacional Afrodescendente, que aconteceu durante a CDB.
“O compromisso com a reparação histórica deve abordar a justiça ambiental, a importância da diáspora africana e dos cuidados que têm os afrodescendentes com a biodiversidade”, declarou.
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Discussão sobre artigo 8 (j)
A discussão sobre o artigo 8 (j) veio a partir de uma recomendação do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas em fazer a distinção entre “povos indígenas” e “comunidades locais”. Para esses grupos, a necessidade da distinção é uma resposta à postura colonialista do órgão, que não leva em consideração as diferentes lutas e reivindicações de cada um.
Para os povos indígenas, após a inclusão de sua categoria no artigo, depois de anos de luta, era fundamental que se instituísse a criação de um órgão subsidiário, ou seja, uma espécie de comitê que dê insumos e aportes que irão embasar as decisões da Convenção.
O movimento de inclusão dos povos afrodescendentes nos documentos oficiais foi puxado principalmente pela Colômbia e pelo Brasil, que uniram esforços com outros países da América Latina e Caribe para que o objetivo fosse cumprido durante essa COP.
A vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, foi um dos principais nomes que estiveram à frente das negociações. Também presente no Fórum, Márquez comentou que se sentia “muito orgulhosa desse momento histórico”.
“Está se celebrando aqui, depois de 32 anos, desde que se promulgou a Convenção, uma reparação de justiça racial. Estamos nervosos, nervosas, mas sabemos que estamos sendo acompanhados pelo espírito de nossos ancestrais e dos homens e mulheres que deram a vida pela liberdade do povo negro”, afirmou.
Ação para inclusão
A Coalizão pelos Direitos Territoriais e Ambientais dos Povos Afrodescendentes da América Latina e Caribe leu um comunicado com 16 recomendações às instâncias e autoridades competentes, definidas durante o evento “Assegurar os direitos de posse da terra e do território dos povos afrodescendentes na América Latina e Caribe: um caminho efetivo para a conservação e ação contra as mudanças climáticas".
O evento aconteceu em Bogotá, de 11 a 14 de junho de 2024, e reuniu países como Colômbia, Brasil, Bolívia, México, Chile, Costa Rica, Guiana, Equador, Peru, Suriname, República Dominicana, Porto Rico, Honduras, Uruguai, Paraguai, Guatemala, Nicarágua e Venezuela.
Entre as recomendações estavam a inclusão do termo “afrodescendente” na CDB, sua participação plena e objetiva no arranjo institucional no grupo de trabalho do 8(j) e o financiamento direto e flexível para os povos.
Manifesto quilombola
Para embasar essa reivindicação, a Conaq levou para a CDB o manifesto “Por território e acesso à biodiversidade - Pela garantia do direito à terra e ao território dos povos quilombolas”.
“É um manifesto que traz vários dados e informações sobre o número de territórios quilombolas, demanda por titularização e proteção. Traz informações características sobre o manejo ancestral tradicional quilombola dos nossos ecossistemas, dos biomas brasileiros, da contribuição quilombola para a justiça climática, para o equilíbrio climático”, explicou Fran Paula, quilombola do Pantanal de Mato Grosso, membra do coletivo de meio ambiente e agricultura da Conaq e pesquisadora em agrobiodiversidade.
“É uma mensagem que a gente levou pra COP 16 para subsidiar a demanda do reconhecimento da população afrodescendente dentro do documento oficial da CDB, divulgando um pouco da força, da articulação do movimento quilombola no Brasil. É um manifesto que é reflexo desse momento de incidência da Conaq na COP16”, afirmou.
Afrodescendentes na América Latina e Caribe
O Processo de Comunidades Negras (PCN) na Colômbia, movimento afro rural, apresentou um ATLAS feito em colaboração com outros parceiros, como a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a Rights and Resources Initiative (RRI)*, e o ISA, que traz um mapeamento da localização dos povos afrodescendentes na América Latina e Caribe.
Segundo a publicação, aproximadamente 21% da população da região é formada por afrodescendentes, totalizando cerca de 154 milhões de pessoas. Em 15 países da região, foram mapeados mais de 32 milhões de hectares de terras rurais, localizadas em municípios ou cantões habitados por afrodescendentes.
No Brasil, foram identificados 1,2 milhões de hectares de terras com titulação oficial e 2,7 milhões de hectares como territórios reivindicados ou em processo de reconhecimento e demarcação.
Financiamento direto
Ainda na CDB, um dos assuntos mais discutidos foi o financiamento direto para os povos e comunidades tradicionais. Durante o painel “Economias quilombola e indígena como instrumentos de conservação da Amazônia”, Kátia Penha, coordenadora nacional da Conaq, comentou sobre a importância de “racializar os mecanismos de gestão existentes dentro do sistema financiador”.
“Porque muitas vezes tem o recurso, mas a burocracia é tanta que a gente não consegue acessar. O projeto já vem engessado. Isso não é autonomia financeira, isso é buscar resultados e dados das nossas comunidades. Nós não queremos estar aqui apenas para ser dados, nós queremos fazer com que a sociedade nos veja como protetores e defensores dessa biodiversidade. Queremos o plano de gestão de dentro pra fora, baseado nessa autonomia financeira. E é essa autonomia financeira que a gente tá buscando agora, buscando parcerias, organizações que tenham esse financiamento para que a gente chegue e dê condições para que essas comunidades continuem agregando valor no que elas já fazem há muito tempo”, declarou.
Programa Quilombo nas Américas
Durante a COP16, Brasil e Colômbia lançaram o “Programa Quilombo das Américas”. A iniciativa tem como foco o enfrentamento às desigualdades raciais e socioambientais que afetam as comunidades em questão e receberá o aporte de US$121.475,00 até 2028 por meio de projeto de cooperação internacional com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
"O Programa Regional Quilombos das Américas é uma cooperação entre países que procura através de seus cinco eixos, que são direitos territoriais, conservação da biodiversidade, identidades e ancestralidades africanas, sistemas agrícolas Tradicionais e Políticas de cuidados e estratégias de resistência às violências promover a internacionalização desse debate”, avaliou o Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos, Ronaldo dos Santos.
Segundo ele, “a iniciativa propicia a troca entre os territórios afro rurais nas Américas, fortalecendo os laços e a cooperação entre essas comunidades, bem como promovendo a troca de experiência entre os governos nacionais, garantindo a consolidação dessa agenda de direitos. Brasil e Colômbia estão apenas dando início a essa experiência, mas pretendemos expandir essa cooperação por diversos países das Américas”, projetou.
*Coalizão com mais de 200 organizações que busca proteger e apoiar os direitos e as lutas dos Povos Indígenas, dos Povos Afrodescendentes e das comunidades locais. As organizações trabalham em diversas áreas temáticas, em especial, justiça de gênero, políticas climáticas, envolvimento do setor privado, meios de subsistência, envolvimento dos jovens, direitos humanos e direitos à água doce. https://rightsandresources.org/es/