Texto que pode ser votado pelo Senado a qualquer momento beneficia interesses imediatistas de grupos empresariais em prejuízo de toda sociedade
Texto atualizado em 1/11/2024, às 16:23
Pode ser votado a qualquer momento, nas comissões de Agricultura e Meio Ambiente do Senado, o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que implode as regras do licenciamento ambiental no Brasil. Das comissões, segue ao plenário da Casa. Aprovado na Câmara num tratoraço em 2021, o texto é de interesse de dois dos lobbies mais poderosos do Congresso: o ruralista e o das grandes indústrias. Caso não seja muito aprimorado pelos senadores, tornará a maioria dos empreendimentos e atividades econômicas dispensada de licença e de estudos de impacto ambiental, beneficiando grandes empresários e socializando prejuízos ambientais e sociais, especialmente para a saúde. Na prática, será o fim do licenciamento para quase todas as obras e empresas que causam poluição e desmatamento, entre outros impactos.
O licenciamento é a peça central da Política Nacional de Meio Ambiente, estabelecida há mais de 40 anos. Antes dele, crianças nasciam sem cérebro por causa da poluição industrial em Cubatão (SP) e hidrelétricas alagavam milhares de quilômetros quadrados de florestas para gerar pouca energia. Por pretender desfigurar o licenciamento ambiental, o PL 2.159 ficou conhecido como a “mãe de todas as boiadas” ou o “PL da Devastação”. O relançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) aumenta a pressão pela aprovação da proposta, mesmo que ela esteja em franco desacordo com as promessas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de incentivar a transição ecológica, zerar o desmatamento, proteger o meio ambiente e a saúde da população.
O Instituto Socioambiental (ISA) e o Observatório do Clima (OC) publicaram uma nota técnica conjunta analisando o PL. O documento traz uma boa e uma má notícia. A má é que a proposta, como está, tem um conjunto de absurdos e inconstitucionalidades tão grande que será objeto de judicialização em massa — atravancando o que se propõe a agilizar. A boa notícia é que o projeto tem conserto: os próprios senadores já propuseram várias emendas que amenizam problemas ou eliminam trechos inconstitucionais, bastando que o Senado as adote em substituição ao texto-base. A seguir, dez horrores ambientais do PL, analisados na nota do ISA e do OC.
Para saber mais, acesse www.pldadevastação.org
1 – ISENÇÃO AMPLA, GERAL E IRRESTRITA
Lista de 13 tipos de empreendimentos que deixarão de ter controle ambiental e ficarão isentos de licenciamento, alguns com alto potencial de causar poluição, como estações de tratamento de esgoto. Também estarão dispensados de licenciamento obras classificadas de forma subjetiva, como serviços de “melhoramento” de estruturas já existentes, o que poderia abranger o aumento das barragens do Rio Madeira (RO) e o asfaltamento da BR-319 (Porto Velho-Manaus), que corta a região mais preservada da Amazônia.
2 – FREE BOI: AGRO SEM LICENÇA
Quem quiser literalmente passar a boiada Brasil afora poderá fazê-lo sem precisar de licença ambiental: o PL dispensa de licenciamento toda e qualquer atividade de agricultura e pecuária extensiva, inclusive para grandes fazendas. A dispensa contraria três julgamentos do STF. No Brasil, a produção rural é responsável por 3/4 das emissões de gases de efeito estufa causadores das mudanças climáticas. O desmatamento responde por 48% do total de emissões e as outras atividades propriamente agropecuárias representam 27% do total. É bom lembrar ainda que o país é um dos campeões mundiais no uso de agrotóxicos, responsáveis por problemas como câncer, lesões neurológicas, renais e na pele, além da malformação de fetos. Sem o licenciamento, o uso indiscriminado dessas substâncias vai aumentar ainda mais.
3 – ESTADOS E MUNICÍPIOS PODERÃO DISPENSAR OUTROS EMPREENDIMENTOS
Estados e municípios terão passe livre para dispensar do licenciamento outros tipos de obras e atividades econômicas impactantes. Esse poderá ser o caso de aterros sanitários, barragens de rejeitos ou uma indústria poluente. Isso tende a gerar uma “corrida antiambiental” de governos municipais e estaduais para rebaixar as exigências socioambientais na tentativa de atrair investimentos.
4 - AUTOLICENCIAMENTO PARA TODO MUNDO E NOVOS DESASTRES
Desde 1981, todo empreendimento que possa causar impactos ao meio ambiente ou à saúde da população precisa ser previamente autorizado pelo órgão ambiental após análise e estudos para medir e prevenir esses impactos. O PL 2.159 prevê que a regra agora será outra: a grande maioria das empresas e atividades econômicas poderá se “autolicenciar”: o empresário só vai precisar preencher um formulário na internet, jurando ter boa conduta, e vai receber uma licença automática, sem análise do órgão ambiental. Depois de grandes desastres, como o de Mariana (MG) e o da Braskem (AL), a norma será confiar na “boa-fé” do empreendedor. Se isso acontecer, a chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC) será usada de forma generalizada e indiscriminada. Segundo a nota técnica do ISA e do OC, 85% dos processos de licenciamento de atividades minerárias e barragens de rejeitos em Minas Gerais poderão ser feitos por LAC. O resultado será a proliferação de mais tragédias ambientais em todo o país.
5 – BRUMADINHO FEELINGS: RENOVAÇÃO AUTODECLARATÓRIA DE LICENÇA
O PL também permite ao empresário renovar sua licença vencida por autolicenciamento, sem nenhuma consulta aos órgãos ambientais, apenas preenchendo uma declaração na internet. Assim, mesmo que um empreendimento opere fora da lei ou descumprindo as condicionantes do licenciamento, poderá ter a licença renovada automaticamente. Imagine, por exemplo, que a renovação da licença de operação de uma barragem de rejeitos de alto risco poderá ser feita confiando apenas na boa-fé do empreendedor. Ou seja, a medida vai abrir caminho para mais tragédias como a de Brumadinho (MG).
6 – LUCRO PRIVADO, PREJUÍZO PÚBLICO: LIMITAÇÃO DE CONDICIONANTES
Pela regra vigente desde 1981, cada impacto de cada empreendimento deve ter medidas para sua prevenção, mitigação ou compensação. De forma inconstitucional, porém, o PL 2.159 quer restringir essas medidas que o órgão ambiental pode exigir do empresário, fazendo com que danos causados pela obra ou a empresa (que geraram lucros) sejam suportados por toda sociedade. Por exemplo, só no caso da rodovia Ferrogrão, entre Sinop (MT) e Itaituba (PA), a limitação das condicionantes ‒ em especial medidas contra o desmatamento induzido pela obra ‒ pode causar, até 2030, a destruição de 53 mil km² de florestas, o equivalente ao território do Rio Grande do Norte (saiba mais).
7 – O CRIME COMPENSA: LICENÇA CORRETIVA ANISTIA MALFEITOS
A Licença de Operação Corretiva (LOC) é aplicada quando um empreendimento está operando sem licença ambiental. É uma chance para o empresário adequar-se à legislação e continuar operando. Mas o PL do licenciamento é excessivamente generoso: além de perdoar as multas, ele anistia crimes ambientais passados e permite fazer essa regularização por autolicenciamento. Dessa forma, compensa para quem está “fora da lei” simplesmente ignorar o licenciamento na hora de planejar a obra. Depois, é só entrar nesse grande “Refis” ambiental baseado unicamente em sua boa-fé, sem análise do órgão ambiental
8 – AMEAÇA A INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E ÁREAS PROTEGIDAS
O PL 2.159 prevê restrições à análise e à adoção de medidas de prevenção a impactos de obras e empresas sobre terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação e o patrimônio histórico e cultural. É um grave ataque contra os povos e comunidades tradicionais e as áreas protegidas, essenciais para garantir nossa “segurança climática”, uma vez que resguardam nossas florestas e outros ecossistemas que regulam nosso clima.
9 – PRAZOS IRREAIS
O PL estipula prazos máximos para o licenciamento. Até aí, nenhum problema. Mas eles são tão curtos que vão inviabilizar a análise de casos de maior complexidade, que exigem estudos de impacto ambiental — a exemplo de grandes hidrelétricas na Amazônia. O problema tende a produzir mais tumulto no licenciamento e aumentar a judicialização.
10 – BANCOS LAVAM AS MÃOS: ZERO RESPONSABILIDADE POR SEUS INVESTIMENTOS
O PL 2.159 introduz um elemento inédito na legislação ambiental, que é impedir que os bancos sejam punidos por danos ambientais cometidos por empreendimentos que eles financiam. Atualmente, essas instituições financeiras devem verificar detalhadamente se seus investimentos podem incentivar danos ou ilegalidades ambientais. A mera apresentação de uma licença pelo empresário ‒ por exemplo, uma autolicença tirada na internet, que tende a se tornar a regra ‒ já exclui os bancos de qualquer responsabilidade. Isso conflita com a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente e com várias normas nacionais e internacionais que determinam que as instituições financeiras devem ser criteriosas do ponto de vista ambiental.