Autores de livro debatem eurocentrismo patrimonial, falhas estatais e arqueologia na defesa de direitos de povos indígenas e tradicionais
O livro Política Patrimonial e Política Indigenista: a proteção jurídica aos lugares sagrados e sepultamentos indígenas, de autoria de Rodrigo Oliveira e Bruna Rocha, traz um diálogo inédito entre o direito indigenista e a arqueologia e propõe uma reflexão sobre a proteção dos lugares sagrados definidos como “lugares de memória e história onde ocorreram fatos importantes da nossa cultura indígena”, segundo os autores.
Bruna Rocha é doutora em arqueologia e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará. Rodrigo Oliveira é jurista e doutorando pela UnB, onde pesquisa a proteção sob a perspectiva do direito e da arqueologia.
O Instituto Socioambiental (ISA), que apoiou a realização da obra junto ao projeto Amazônia Revelada, conversou sobre o livro com os autores. O principal alerta deles é sobre a grave violação dos direitos humanos quando o Estado brasileiro autoriza a instalação de empreendimentos, como hidrelétricas e estradas, e causa a destruição de lugares sagrados de povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais.
Apenas dois lugares sagrados de povos indígenas foram tombados até o momento pelo Estado, indicando que a política patrimonial brasileira segue atuando sob o padrão eurocêntrico e contrariando a Constituição, afirmam os autores.
Leia a entrevista completa abaixo:
1. A partir das pesquisas realizadas, o que é importante para a sociedade brasileira e, especificamente, para o público atento às pautas socioambientais, saber a respeito das ameaças aos lugares sagrados e à garantia dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais?
Os lugares sagrados são como arquivos mnemônicos, que armazenam histórias de diversas temporalidades e informam o senso de pertencimento dos povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Lembrando que estamos falando de culturas ágrafas, que transmitem o conhecimento a partir da palavra falada de geração em geração. Desta forma, os lugares sagrados são como alicerces de memória para esses grupos, pois compõem processos de ensino e aprendizagem sobre o território e sua história, que é ligada à origem e existência desses grupos.
Portanto, os lugares sagrados fundamentam as próprias identidades específicas desses grupos e compõem a relação intrínseca e única que eles têm com seus territórios. É também comum que lugares sagrados desempenhem um papel importante no equilíbrio ambiental, sendo locais que concentram plantas medicinais ou de uso ritualístico, ou lugares de reprodução de peixes, por exemplo.
Nesse sentido, a destruição de lugares sagrados constitui uma grave violação de direitos humanos e, historicamente, foi utilizada como ferramenta de dominação colonial e imperial.
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A Política Nacional de Meio Ambiente e a Convenção nº. 169 [da Organização Mundial do Trabalho (OIT)] preveem que o licenciamento ambiental é, também, um instrumento para a proteção do patrimônio cultural. Apesar da proteção, esses lugares vêm sendo destruídos pelo avanço da sociedade industrial, o que causa abalos de ordem simbólica e cultural e representa um processo de epistemicídio e, portanto, genocídio cultural/etnocídio.
O Estado brasileiro, não raro, autoriza através do licenciamento ambiental a instalação de empreendimentos - como hidrelétricas, portos e estradas - que implicam na destruição de lugares sagrados e significativos de povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais.
Desta forma, na prática, o licenciamento ambiental foi convertido em ferramenta para legitimar a destruição de lugares sagrados e significativos, sempre que estão em disputa os empreendimentos prioritários para as elites econômicas e políticas do país.
É inconcebível que isso siga ocorrendo em um país que se pretenda plural e democrático. Isto só pode ser explicado pelo profundo racismo que ainda nos assola, o que permite relegar esses lugares à aniquilação. Esses processos simplesmente não ocorreriam com o patrimônio cultural e de ordem religiosa de matriz europeia.
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2. Vocês propõem um diálogo entre a arqueologia e o direito indigenista. Como a investigação em arqueologia pode fortalecer questões relativas aos direitos dos povos indígenas no contexto atual? Quais seriam os principais obstáculos para isso?
A arqueologia possui ferramentas bastante robustas para visibilizar passados silenciados, demonstrando de forma inequívoca a presença histórica de povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais, sendo capaz de datar vestígios arqueológicos de forma direta ou indireta. Para além do direito ao território, a arqueologia pode fornecer subsídios para processos e materiais da educação diferenciada, direito esse que ainda não é plenamente atendido.
Os principais obstáculos são a destruição ilegal das paisagens e dos sítios arqueológicos por queimadas, por maquinário agrícola, ou mesmo de forma legalizada – a partir da destruição autorizada de sítios após seu estudo em processos de licenciamento ambiental. Por mais bem feitos que possam ser, é bastante raro que esses estudos consigam impedir o avanço de empreendimentos que irão destruir as paisagens e muitas vezes os sítios arqueológicos nelas inseridas, assim rompendo a relação que comunidades indígenas e locais possuem com esses lugares.
Ocorre que, de cada dez portarias emitidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para pesquisa arqueológica, mais de nove estão relacionadas a processos de licenciamento ambiental. O licenciamento ambiental precisa existir, todavia, ele precisa mudar de forma a incorporar a consulta prévia, livre e informada, e ele precisa se tornar um instrumento para de fato informar tecnicamente decisões sobre a construção de empreendimentos. Mas, enquanto for o próprio empreendimento que contrata as empresas de licenciamento, é difícil que isso aconteça.
Outra questão é que o principal órgão estatal que lida com a implementação de políticas indigenistas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ainda não possui vagas específicas para arqueólogos, então, inevitavelmente, há relativamente poucos processos – seja de demarcação, seja de implementação de políticas de gestão territorial dentro de terras já demarcadas –, que contam com um olhar arqueológico, que poderia beneficiar muito esses procedimentos.
3. De que forma a arqueologia pode apoiar na comprovação da inviabilidade do Marco Temporal? Podem citar exemplos?
A arqueologia trabalha com materialidade – seja ela milenar, seja ela recente ou mesmo atual. Isso ainda inclui a antropização de paisagens – seja a partir das relações desenvolvidas entre comunidades humanas e de plantas, da transformação de solos e das marcas na terra (como caminhos e valas). A arqueologia estuda também a relação historicamente informada que comunidades humanas possuem com as paisagens em seus territórios. Dessa forma, a disciplina possui ferramentas muito interessantes para compreender e comprovar a presença de povos indígenas e tradicionais em seus territórios, algo bastante importante, dado que registros escritos podem ser inexistentes, parcos ou mesmo inverídicos, como ocorreu durante a ditadura civil militar, quando o próprio Estado emitia 'certidões negativas', que negavam a presença de povos indígenas em determinados territórios para abrir caminho para fazendas ou outros empreendimentos, ou em processos de grilagem mais recentes.
Existem trabalhos que têm olhado para como a concentração de espécies botânicas úteis [para fins alimentares, medicinais ou tecnológicos] em 'ilhas de floresta' são índices de antigas aldeias ou práticas de manejo indígena em territórios que sofreram processos de esbulho territorial durante o regime civil-militar brasileiro, de onde comunidades indígenas sofreram deslocamentos forçados. Os trabalhos do arquiteto Paulo Tavares junto aos Waimiri-Atroari no Amazonas e aos Xavante em Mato Grosso vão nessa direção, embora ele seja um arquiteto, o trabalho realiza uma investigação arqueológica. Assim como a pesquisa realizada por Claudia Plens e colaboradores, também junto aos Xavante. No Mato Grosso do Sul, Jorge Eremites tem trabalhado junto aos Kaiowá e Guató em defesa de seus direitos territoriais.
4. Até que ponto o tombamento e a proteção aos lugares sagrados ainda seguem um paradigma eurocêntrico e como isso pode mudar, na prática? Quais as vantagens desta mudança?
No campo das políticas patrimoniais, o Estado segue privilegiando a proteção ao patrimônio edificado, sobretudo de origem colonial europeia. Apenas dois lugares sagrados indígenas foram tombados até o momento, ao passo que o Estado segue autorizando, via licenciamento ambiental, a destruição de lugares sagrados e significativos dos povos indígenas. Pode-se afirmar, assim, que a política patrimonial brasileira segue operando sob o paradigma eurocêntrico, apesar de sua contrariedade à Constituição e aos direitos humanos.
A superação deste paradigma passa por adequar as prioridades, práticas e normas do Iphan às diretrizes constitucionais e do direito internacional dos direitos humanos relativas aos direitos coletivos dos povos e comunidades ao seu patrimônio cultural. A mudança permitirá que o Estado brasileiro cumpra seu dever constitucional e proteja os lugares sagrados e significativos de diversos grupos que foram historicamente marginalizados pelas políticas patrimoniais, como os povos indígenas, as comunidades quilombolas e os povos e comunidades tradicionais.
5. Rodrigo, como você avalia as limitações dos instrumentos atuais do direito para a proteção dos lugares sagrados? Como os casos estudados por vocês mostram essas limitações?
A partir da década de 1980, houve uma mudança profunda na maneira como a Constituição brasileira e os tratados internacionais de direitos humanos concebem o patrimônio cultural. A Constituição de 1988 buscou superar o racismo institucional que permeia a política patrimonial brasileira desde sua gênese, na década de 1930.
O “patrimônio histórico e artístico nacional” foi substituído pelo “patrimônio cultural”, enquanto categoria orientadora da política patrimonial brasileira. O direito do patrimônio deu lugar ao direito dos povos e comunidades ao seu patrimônio cultural.
No entanto, em que pese a revolução promovida pela atual Constituição no tema, os instrumentos jurídicos encarregados de sua proteção foram majoritariamente instituídos antes dessas transformações, a exemplo do tombamento e da proteção ao patrimônio arqueológico.
O que se observa é que o Iphan, ao executar a política patrimonial, não promoveu uma releitura destes instrumentos a partir das transformações constitucionais. O órgão, na prática, segue negando a condição de patrimônio cultural aos lugares sagrados dos povos indígenas, o que configura racismo institucional.
Exemplo disso foi a negativa do Iphan de abrir processo administrativo para promover o tombamento do Salto Sete Quedas, no Baixo Rio Teles Pires, sob o fundamento de que já seria protegido como sítio arqueológico.
Além disso, o Iphan segue atribuindo às categorias legais sentidos alinhados ao paradigma eurocêntrico. Por exemplo, ao delimitar a proteção ao bem tombado considerando critérios ocidentais de monumentalidade e ao compreender a preservação como conservação inalterada, dentre outros limites.
6. A violação dos lugares sagrados não é caracterizada como crime ambiental?
Depende. Os artigos 62 e 63 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº. 9.605/1998) criminalizam a conduta de destruir um bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor “histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico”.
Desta forma, existem, ao menos, três cenários: (i) o lugar sagrado se enquadra na definição de sítio arqueológico e, neste caso, sua destruição não autorizada configura crime, não pelo seu caráter sagrado, mas em razão da proteção legal conferida aos sítios arqueológicos pela Lei nº. 3.924/1961; (ii) o lugar sagrado foi tombado, por ato administrativo, nesta hipótese sua destruição configura crime; (iii) o lugar sagrado não se enquadra na definição legal de sítio arqueológico e tampouco foi tombado por ato administrativo, hipótese em que sua destruição não caracteriza crime.
7. Atualmente, quais as principais ameaças ao patrimônio cultural indígena?
As principais ameaças são de duas naturezas: atividades absolutamente ilegais, como garimpo, desmatamento, grilagem de terras; e atividades licenciadas, como hidrelétricas, portos, rodovias e ferrovias, que muitas vezes, apesar de sua instalação implicar a destruição de lugares sagrados, são autorizadas pelo Estado.