Autores de livro sobre Consulta Prévia, Livre e Informada apontaram obstáculos para a aplicação do direito no Brasil durante lançamento no MPF-PA
* Colaborou Isabella Pilegis, jornalista do ISA
Marcada para acontecer entre 10 e 21 de novembro de 2025, em Belém (PA), a Conferência do Clima sobre Mudanças Climáticas (COP 30) vai desembarcar pela primeira vez no Brasil e deve colocar no centro do maior evento global de discussões climáticas a Amazônia e os povos que vivem nela.
Não é novidade que, por meio de seus modos de vida, indígenas, quilombolas, extrativistas e outras populações tradicionais são os principais responsáveis pela conservação das florestas e, consequentemente, seus territórios armazenam imensos estoques de carbono – o que é essencial para o enfrentamento da crise climática.
No entanto, esses povos vêm enfrentando diversos desafios na defesa de seus direitos e territórios, como a dificuldade para garantir a consulta em todas as fases de projetos de infraestrutura e em discussões sobre mecanismos de financiamento climático em Terras Indígenas e Áreas Protegidas, como mercados de carbono e programas jurisdicionais de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD+).
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Esses foram os temas centrais das discussões que aconteceram no Auditório do Ministério Público Federal em Belém (PA), que sediou, no final de fevereiro, o lançamento do livro “Tribunais Brasileiros e o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com o Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado e o Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental.
A partir de um amplo levantamento, os autores analisaram decisões nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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“A consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais é o mínimo. E esse mínimo ainda é negado pelo Estado brasileiro”, afirmou Felício Pontes, procurador-regional da República conhecido por sua atuação pela garantia dos direitos constitucionais de indígenas e quilombolas na Amazônia. Ele disse esperar que o livro contribua para “um processo de descolonização do judiciário brasileiro”.
A Consulta Prévia, Livre e Informada é obrigação exclusiva do Estado, representado pelos poderes Executivo e Legislativo, que não podem delegar a particulares a atribuição. “Foram 524 anos, no Brasil especialmente, de colonialismo mesmo, de fazer com que a visão do colonizador, a visão de fora, europeia, fosse a visão dominante, sem nenhuma forma de valorização da visão dos povos originários. O direito à Consulta inverte isso”, explicou.
O que é o direito à Consulta?
A Consulta Livre, Prévia e Informada é um direito instituído pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e incorporado pelo Brasil e pela Declaração de Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas.
Em essência, ele prevê que povos indígenas e comunidades tradicionais sejam consultadas antes de ações que impactem seus territórios e modos de vida (saiba mais no especial do ISA sobre o tema).
Uma das formas de se fazer isso é por meio de protocolos de consulta, documentos elaborados por cada povo indígena ou comunidade tradicional sobre a forma e processo em que devem ser consultados, de modo que respeite suas instituições representativas, usos e tradições.
“Até fevereiro [deste ano], mapeamos 105 Protocolos Autônomos Comunitários. Para a COP 30, é essencial elevar essa discussão estratégica, garantindo o cumprimento da Convenção 169 da OIT e das Convenções-Quadro do Clima, priorizando a proteção dos territórios e biomas frente às vulnerabilidades climáticas”, destacou Liana Amin Lima, professora de Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e coordenadora do Observatório de Protocolos.
“A consulta cabe a todos os atos administrativos e legislativos, portanto, é um dever do Estado acompanhar também esses processos. Mas o acompanhamento no processo de condução de processos de Consulta, de fiscalização do cumprimento dos acordos [como nas discussões de REDD+], passa também pelo respeito ao protagonismo, à autonomia, à autodeterminação desses povos”, continuou.
Biviany Rojas Garzón, advogada e representante do Instituto Socioambiental (ISA), defendeu que a participação de povos indígenas e tradicionais nas discussões sobre a crise climática são cruciais, pois eles desempenham um papel vital para a humanidade. “As florestas são importantes para discutir o conjunto de medidas que precisamos adotar como espécie humana para mitigar e nos adaptar [à crise climática]”, analisou.
“E os povos da floresta são fundamentais nessa discussão, pois participam ativamente das decisões sobre o manejo e a regeneração das florestas. Dessa forma, as políticas públicas sobre REDD+ envolvem principalmente os territórios indígenas e de comunidades tradicionais e, com isso, eles são atores fundamentais para essa discussão”.
“O direito à Consulta, para a população quilombola, é importante para a visibilização tanto da comunidade, quanto das violações que as comunidades quilombolas passam, ou seja, a invisibilização [sofrida] até mesmo por parte do Estado”, pontuou Vercilene Dias, advogada quilombola e assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Com a proximidade da COP 30, ela defendeu que as discussões sobre direito à consulta e a presença de lideranças dos povos da floresta sejam assegurados. “Porque são justamente [eles] que estão sendo afetados. Quem sofre as afetações [das mudanças climáticas] não são as pessoas de classe média ou que estão nos grandes centros; são as pessoas da periferia, as comunidades tradicionais”, lembrou.
“É importante que outros países [na COP 30] conheçam os protocolos de consulta de povos indígenas e comunidades tradicionais, para avançarmos na discussão da consulta. Há muitas empresas internacionais que desejam comprar créditos de carbono e têm que conhecer como funcionam nossos direitos”, argumentou Ewésh Yawalapiti Waurá, advogado indígena e diretor da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix).
Rodrigo Magalhães de Oliveira, analista do Ministério Público Federal, apontou que o Pará está no centro dessa discussão, devido à COP 30, mas que “o Estado tem sido um sistemático violador” desse direito e que, por isso, é preciso fazer o “dever de casa”.
Segundo ele, a Consulta é um instrumento capaz também de garantir a salvaguarda, a integridade dos territórios e da floresta, o que é fundamental não apenas para os povos protagonistas, mas para o mundo inteiro.
“Não tenho dúvida de que existem muitos obstáculos à concretização do direito à Consulta, que passam pelo racismo e pela forma como o Estado sempre tratou essas comunidades. Então, a Consulta implica na limitação da possibilidade do Estado agir de forma arbitrária”, indicou.
Realidade nos territórios
Vercilene Dias e Ewésh Yawalapiti Waurá trouxeram para o lançamento em Belém a visão da realidade dessas discussões nos territórios, especialmente no âmbito dos debates sobre financiamento climático. Segundo eles, ainda há muito desconhecimento nas aldeias e comunidades sobre o funcionamento de mecanismos como mercados de carbono e programas jurisdicionais ou governamentais de REDD+.
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No caso dos mercados voluntários de carbono, a falta de informações contratuais nítidas e abordagens de empresas que não respeitam os protocolos de consulta, podem resultar na assinatura de contratos assimétricos e injustos, que mantêm essas populações subjugadas
“Ainda estamos em uma etapa de explicar às lideranças e associações como funciona o mercado de carbono, o que é carbono, a orientá-los a entender por que é possível receber créditos de carbono pelo papel que eles desempenham na preservação das florestas”, pontuou Ewésh Yawalapiti Waurá.
“Têm ocorrido negociações desfavoráveis. Muitas vezes os contratos preveem destinar na repartição de benefícios uma porcentagem muito pequena, porque não tem uma consulta efetiva. E a preocupação é ainda maior na questão do mercado de carbono local. As empresas de consultoria de aproximam, incidem diretamente nas comunidades, negociando com algumas lideranças sem levar a discussão ampla para os territórios”, lamentou.
Conheça o Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu
“Quando não se consultam as comunidades, quando há uma ausência total do processo de direito à consulta, aumenta a judicialização”, lembrou Vercilene Dias.
Ela contou durante a mesa de lançamento que empresas que desejam compensar suas emissões de carbono têm procurado comunidades quilombolas com ofertas de contratos extremamente desvantajosos e que só tomam conhecimento de empreendimentos ou de instrumentos normativos a partir do momento em que sofrem a violação.
“E elas [respondem] assim: ‘Olha, não é desse jeito. A gente não foi consultado. Essa norma aqui não atende às nossas especificidades, ou seja, esse projeto, esse empreendimento, também não atende às nossas especificidades’”, relatou.
O direito à consulta, segundo ela, traz a visibilidade necessária para as comunidades lutarem por seus direitos. “Para dizer para o Estado, para dizer para a sociedade: ‘eu existo. Eu estou aqui. Eu estava aqui antes. Por que eu não fui consultado antes do empreendimento vir até meu território querer me deslocar ou antes da normativa ser criada?’”.
Serviço
Livro “Tribunais Brasileiros e o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”
Autores: SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.)
Editora: Instituto Socioambiental e CEPEDIS
Nº de páginas: 322