O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, analisa o novo processo de discussão sobre o "marco temporal" das demarcações no STF
A primeira audiência de “conciliação” sobre o “marco temporal”, promovida pelo ministro Gilmar Mendes, aconteceu na segunda-feira (5), no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro é relator de um pacote com cinco ações judiciais sobre a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, que pretende aplicar o “marco temporal” às demarcações, restringindo o direito dos povos indígenas sobre suas terras e sobre o usufruto exclusivo de seus recursos naturais.
Nessa primeira audiência, o ministro abriu o debate sobre o escopo e a agenda do processo, que, a princípio, deve se estender até o final do ano. A primeira etapa estabelecerá regras e dará espaço para o posicionamento prévio das partes que compõem a comissão especial de conciliação: o Congresso, partidos, estados, municípios, Advocacia Geral da União (AGU), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ministérios e organizações indígenas. Também participam, como observadores, membros do Ministério Público Federal (MPF) e os “amigos da Corte” (terceiros que participam dos processos judiciais com o objetivo de apresentar subsídios ao juiz).
Supõe-se que as decisões recentes do STF, que julgou inconstitucional o “marco temporal” e fixou 14 teses basilares sobre as demarcações, não serão revistas. Porém, poderão ser revisitadas para pactuar entre as partes condições de efetividade das decisões tomadas, como por exemplo, os critérios de elegibilidade e os meios para indenizar detentores de títulos legítimos incidentes nas Terras Indígenas (TIs).
É provável que a discussão inclua também outras restrições à incidência de novas demarcações sobre propriedades rurais, como a hipótese de compra de outras áreas para os indígenas – uma forma de compensação pela não demarcação de seus territórios tradicionais. Mas o recurso regular à compra de terras tornaria sem sentido o atual procedimento demarcatório, que se destina a reconhecer esses territórios.
Tudo indica que a “conciliação” incluirá a regulamentação do parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição, que prevê exceções ao direito de usufruto exclusivo dos indígenas aos recursos naturais das suas terras, quando houver “relevante interesse público da União”, o que inclui pesquisa e lavra minerais.
“Pouca terra para muitos indígenas”
As TIs de Roraima e do Amazonas são muito lembradas no debate político que permeia o “marco temporal”. Tal conceito, ausente do processo constituinte, foi suscitado décadas depois, pela primeira vez, no julgamento pelo STF sobre a constitucionalidade da demarcação da TI Raposa-Serra do Sol (RR). E é retórica e equivocadamente associado à TI Yanomami (RR-AM), para sugerir que há “muita terra para pouco índio”.
Porém, os povos indígenas ocupam essas terras desde tempos imemoriais, o que o próprio STF já reconheceu, assim como a legalidade do laudo antropológico que embasou a sua demarcação em extensão integral, descartando a possibilidade da incidência do “marco temporal”. Embora ainda existam demarcações pendentes na Amazônia, nela está concentrada 98% da extensão total das TIs no Brasil. A demanda por demarcações está fora dessa região, na outra metade do país, onde estão 49% da população indígena, e só 2% da extensão das terras.
De acordo com dados do Censo 2022, a Bahia e o Mato Grosso do Sul detém a segunda e a terceira maior população indígena do país vivendo em TIs, em áreas diminutas ou em zonas urbanas. Em primeiro lugar está o Amazonas. Conflitos armados têm sido frequentes no sudeste baiano e no sudoeste sul-mato-grossense. Não por acaso, a primeira audiência de “conciliação” ocorreu sob o signo violência, realizada por jagunços, de uma comunidade Guarani-Kaiowá que tenta retomar uma área indígena já delimitada, mas ocupada por fazendeiros.
Confinamento
O processo de “conciliação” deveria se inspirar na busca de soluções para casos emblemáticos como o do Mato Grosso do Sul, onde vivem 116 mil indígenas, de dez etnias, somando mais de 4% da população do estado. Apesar disso, a extensão total das terras reconhecidas como indígenas não passa de 2,5% da extensão do estado, com parte delas ainda em posse de não indígenas.
A Reserva Indígena de Dourados foi constituída com 3,5 mil hectares, no entorno do posto indígena ali instalado, em 1925, para reassentar comunidades indígenas transferidas das suas terras tradicionais, liberadas para a colonização. Um século depois, a população indígena da área passa de 15 mil pessoas e as antigas aldeias transformaram-se em bairros alcançados pela expansão urbana.
A própria definição constitucional de TI supõe modos extensivos de ocupação. Mas, ali, os indígenas sobrevivem numa dramática correlação de cerca de 4 pessoas por hectare, enquanto o módulo rural (extensão mínima estimada para a sobrevivência de uma família de agricultores) na região de Dourados é de 30 hectares.
É evidente que a situação dessas reservas, que concentram a maior parte da população indígena do estado, resulta numa fonte permanente de conflitos. Pode-se entender a opção de muitas famílias por retornar aos seus territórios tradicionais, mesmo sabendo que a sua retomada exigirá sangue, suor e lágrimas.
Disponibilidade de terra
A demarcação de TIs no Mato Grosso do Sul, assim como em outras áreas críticas, está virtualmente paralisada há mais de dez anos. Nesse tempo, os conflitos só cresceram, assim como o número de vítimas, de suicídios, de doenças evitáveis etc. O sentido prático do conceito de “marco temporal” é dificultar e paralisar as demarcações, uma barreira jurídica para impedir sua conclusão, e uma usina de conflitos.
Se a “conciliação” promovida pelo STF pretende resolver conflitos, precisa focar na disponibilização de terras para compensar e reassentar terceiros ocupantes de territórios em demarcação. Ou, ainda, para facilitar a conexão entre as terras e as comunidades, abrir espaço para novas aldeias e para parte da crescente população indígena, sobretudo em regiões críticas.
Algumas das teses relativas ao pagamento de indenizações e à compra de terras, já aprovadas pelo STF no julgamento da inconstitucionalidade do “marco temporal”, caminham nessa direção, mas carecem de efetividade. Os representantes do Congresso, do Executivo e do setor rural que participam dessa conciliação deveriam pactuar a destinação de orçamento, a emissão de títulos, a estruturação dos órgãos envolvidos e a adoção de políticas que garantam essa efetividade.
Qualquer processo administrativo pode ser aperfeiçoado, ou adaptado a novas circunstâncias, e o reconhecimento oficial de TIs não foge à regra. A edição do Decreto 1.775/1996, que regulamenta as demarcações, é um exemplo disso. A adoção da indenização a portadores de títulos legítimos, por si só, exigirá novos critérios e instrumentos.
Perda de foco
Não cabe rever as decisões já tomadas pelo STF. Agora, o objetivo é promover acordos entre as partes e dar condições para que o processo demarcatório avance e se conclua, promovendo a reparação aos terceiros de boa-fé afetados por ele. O escopo dessa “conciliação” não deveria ir além do escopo da lei que está em questão.
O ministro relator sugeriu a possibilidade de tratar, no âmbito dessa mesma comissão de “conciliação”, de outros casos específicos de demarcação envolvidos em processos que tramitam no STF. No entanto, além do risco de dispersão, não faz sentido mobilizar todas as instituições que a integram para discutir situações específicas e locais, sendo que partes diretamente envolvidas não estão incluídas. Se o STF entende que esses casos também exigem conciliações, deveria promovê-las por meio de comissões específicas.
Propôs-se, também, a regulamentação dos parágrafos 3º e 6º do artigo 231 da Constituição, que tratam da pesquisa e lavra de minérios e de exceções ao usufruto exclusivo dos indígenas aos recursos naturais das suas terras, derivados do “relevante interesse público” da União. Há uma sobreposição parcial, pois a mineração nessas terras só é admitida no interesse nacional.
Embora o ministro Gilmar Mendes também seja relator de uma ação, movida pelo PP, requerendo que o STF supra a omissão do Congresso e promova a regulamentação do artigo 231, e o seu mérito também afete direitos territoriais dos povos indígenas, não parece pertinente ao mesmo processo. Avaliar a constitucionalidade de uma lei é atribuição regular do STF, mas suprir a omissão de um poder envolve outros cuidados, instituições e questões técnicas bem distintas.
O conceito de “marco temporal” foi canibalizado pela polarização política do país e usado, de forma equivocada, como mote para conflitos entre os três poderes. O nível do contencioso determinou o formato dessa “conciliação”. Apesar de polêmica, a mineração em TIs tem previsão constitucional e não tem o mesmo grau de disputa instalado. Não faz sentido contaminar esse debate com o desgaste do outro.