O sócio fundador do ISA Márcio Santilli alerta para os riscos para os direitos de comunidades tradicionais da MP 1.151, que pode ser votada no Senado ainda hoje. Artigo publicado originalmente no Valor Econômico
Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 2/5/2023 (leia o PDF)
Em 30/3, o plenário da Câmara aprovou a Medida Provisória (MP) 1.151/2022, que pretende alterar a Lei de Concessões Florestais, de 2006, para ampliar as atividades que podem ser concedidas em florestas públicas. Pelo texto, além da madeira, a concessão pode abranger o manejo de espécies animais, a pesca e o patrimônio genético, por exemplo. Agora, o Senado tem a oportunidade de corrigir equívocos do texto.
Os defensores da MP alegam que a lei precisa ser alterada porque o manejo sustentável e legal de madeira é inviável economicamente frente à concorrência da extração ilegal e predatória. Mantido o status quo atual, um dos objetivos originais da lei, que é impedir o desmatamento ilegal, deixa de ser cumprido. O problema seria resolvido com a ampliação das atividades passíveis de concessão.
Uma primeira questão são os possíveis impactos sobre as populações tradicionais. Por exemplo, uma concessão de manejo pesqueiro pode afetar a disponibilidade de peixes numa região. Quando houver sobreposição e conflito de usos e de interesses sobre as mesmas áreas, as concessões podem ameaçar a subsistência e a qualidade de vida dessas comunidades. Registre-se que o uso que elas fazem dos recursos naturais é mais compatível com a conservação dos estoques de carbono do que o manejo florestal convencional.
Há ainda várias dúvidas se a MP traria mais dificuldades para o reconhecimento oficial dos territórios tradicionais. Seria de se esperar uma regulamentação que estabeleça a titularidade dos vários atores que vivem e manejam florestas, e não apenas para empresas concessionárias.
É imperativo, portanto, que a nova lei seja acompanhada de salvaguardas adequadas para a proteção dos direitos dessas populações. Já falamos sobre alguns riscos do mercado de carbono para elas em artigo publicado aqui no Valor.
A geração e comercialização de créditos de carbono, principal pleito das concessionárias, também foi incluída no rol de novas atividades que poderiam ser alvo das concessões.
Empresas, instituições ou pessoas podem compensar as emissões de gases de efeito estufa, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos de carbono gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera. Exemplos são o reflorestamento ou o controle dos poluentes de uma indústria.
Tiro no pé
A permissão generalizada para geração desses créditos por concessão florestal, sem a necessária comprovação de sua contribuição para o combate às mudanças climáticas, será um tiro no pé não apenas para as concessionárias, mas para o próprio mercado de carbono - que o Brasil ainda pretende regulamentar e consolidar.
Enquanto a restauração florestal de áreas degradadas promove o sequestro de carbono de forma evidente e mensurável, em geral isso não acontece no caso das concessões para a extração de madeira. Comumente, a retirada de madeiras mais nobres requer décadas para a regeneração da área explorada. Até que se complete o ciclo, o que ocorre é a redução do estoque de madeira por meio da continuidade da extração. Concretamente, haverá emissões de gases de efeito estufa até que, se der tudo certo, ocorra a reposição do estoque. Não há adicionalidade quanto ao sequestro de carbono, ou seja, não ocorre redução efetiva de emissões.
Quem define as regras para que um crédito de carbono seja gerado e comercializado não é quem acha que tem direito a esse crédito. A transação não se dá por autodeclaração e nem na presunção da boa-fé dos envolvidos.
As metodologias usadas em determinado projeto para calcular se existe e qual seria o efeito da redução de emissões ou remoção de carbono da atmosfera precisam ser validadas após análises técnico-científicas e jurídicas. Se uma metodologia é aprovada, um projeto que pretende aplicá-la precisa ser avaliado por entidade independente credenciada para certificar que esses resultados foram alcançados e, nesse caso, só aí são gerados créditos. Os projetos também precisam ser auditados ao longo do tempo para avaliar se estão cumprindo com os objetivos climáticos. Além disso, a certificação desses projetos deve avaliar se eles atendem a salvaguardas socioambientais, muito além do carbono.
Ocorre que, hoje, a contabilidade das empresas de consultoria de comercialização de créditos de carbono por floresta nativa é para lá de duvidosa. Em janeiro, uma investigação dos jornais The Guardian e Die Zeit e da agência SourceMaterial mostrou que mais de 90% dos créditos de carbono florestal de parte importante do portfólio da principal certificadora do mundo não significavam reduções de emissões. A empresa está revendo seus projetos e metodologias.
O mercado de carbono vive um boom especulativo desde a Conferência da ONU sobre clima realizada em 2021 em Glasgow, Escócia, quando avançou a regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris. O dispositivo trata dos mecanismos de cooperação entre países para implementar esse mercado. Ele estabelece dois mecanismos: um prevê transferências de resultados da redução de emissões entre países; o outro permite que empresas desenvolvam iniciativas de redução de emissões ou remoção de carbono para gerar créditos de carbono comercializáveis com outras empresas ou com governos de outros países.
Contudo, as discussões sobre os créditos relacionados a desmatamento evitado ainda são embrionárias. Por ora, as negociações da ONU não definiram se florestas nativas fariam parte de nenhum desses mecanismos.
A proposta de uma nova lei que poderia pretensamente inundar o mercado com créditos de carbono no Brasil, sem credibilidade, tem potencial para levar o próprio mercado à bancarrota. As propostas para regular o tema em âmbito nacional podem estar com sentença de morte antes mesmo de sua aprovação.
Se houver compradores para tanto crédito sem lastro, eles os comprariam apenas para marketing ambiental enganoso (greenwashing). Nenhuma empresa ou governo que tem de compensar emissões para cumprir uma obrigação legal vai comprar crédito não certificado e sem credibilidade.
* Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Foi deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.