Na última hora, parlamentares aliados do movimento indígena conseguiram retirar do parecer do PL 490 autorização para mineração, garimpo e hidrelétricas nas Terras Indígenas. Projeto segue ao Senado enquanto “marco temporal” será analisado pelo STF
Por 283 votos a favor, 155 contra e uma abstenção, o plenário da Câmara aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, na noite desta terça-feira (30/05). Na prática, a proposta inviabiliza a demarcação das Terras Indígenas (TIs), entre outros pontos (veja box abaixo).
O projeto vai agora ao Senado mas ainda não há previsão de quando será apreciado. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prometeu um trâmite menos acelerado, com mais espaço para debates, em conversas com a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
“O presidente do Senado já demonstrou que terá prudência, que passará [o PL] por todas as comissões, organizará audiências e ouvirá também os povos indígenas, sobretudo potencializando todos os procedimentos e ritos”, informou Xakriabá. “[Pacheco] ainda reafirmou o compromisso de analisar toda a inconstitucionalidade [do projeto] e que não deixará passar qualquer inconstitucionalidade”, acrescentou.
Na votação de destaques na Câmara, os partidos contrários ao PL 490 obtiveram uma vitória importante, conseguindo retirar do relatório do deputado Arthur Maia (União-BA) a possibilidade da realização do garimpo, da mineração e da construção de hidrelétricas nas TIs. O destaque é uma emenda sobre um dispositivo específico votada em separado e, nesse caso, foi apresentado pela deputada Duda Salabert (PDT-MG).
A redação final do relatório, no entanto, autoriza a instalação nesses territórios de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”. Além disso, segundo o texto aprovado, quando houver sobreposição entre TIs e Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.
Quais os principais problemas do PL 490?
- Permite a retomada de "reservas indígenas" pela União a partir de critérios subjetivos
- Aplica o “marco temporal” a todas as demarcações de Terras Indígenas, inviabilizando um procedimento já demorado
- Estabelece que a demarcação poderá ser contestada em todas as fases do processo administrativo, também inviabilizando-o
- Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”
- Dispensa atividades altamente impactantes da realização de consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas, conforme determina a Constituição e a legislação internacional
- Abre brecha para o fim da política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários
- Quando houver sobreposição entre territórios indígenas com Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área
Entenda em detalhes:
Nota Técnica do ISA sobre o PL 490 (resumo)
Governo orienta contra
PT, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT orientaram suas bancadas contra o texto principal do PL 490. O bloco formado por União Brasil, PP, a federação PSDB-Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota liberou os parlamentares para que votassem como quisessem. Demais partidos, oposição e minoria posicionaram-se a favor (veja orientações de bancada e votos dos parlamentares).
A liderança do governo também orientou contra, diferente do que aconteceu na análise do regime de urgência, na semana passada, quando liberou seus partidos. A decisão foi alvo de críticas.
“Esta questão [da continuidade das demarcações de TIs] fez parte do programa de reconstrução apresentado pelo presidente Lula na disputa eleitoral. Foi um compromisso eleitoral”, afirmou o líder do governo, José Guimarães (PT-CE). De acordo com ele, a posição governista considerou também que o PL 490 altera a Constituição por meio de uma lei ordinária, o que não pode ser feito segundo a legislação. “É um risco grande. Isso gera instabilidade [jurídica]”, defendeu.
Na última hora, no entanto, o PT desistiu de defender um destaque, para evitar novos atritos com sua própria base e com os ruralistas.
Tentativa de acordo
Guimarães revelou a tentativa de um acordo entre governo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender igualmente a análise do PL, pelos deputados, e do chamado “marco temporal” das demarcações, pela corte. A negociação falhou.
O STF está apreciando o assunto por meio do caso específico da TI Ibirama-Laklanõ (SC), mas a decisão final terá “repercussão geral”, ou seja, servirá de regra para todos os procedimentos demarcatórios. O julgamento começou em 2021, já foi suspenso cinco vezes e tem previsão de ser retomado na próxima quarta (7/6). A questão é que o “marco temporal” também está previsto no PL 490.
Trata-se de uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Alternativamente, teriam de comprovar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data.
A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações, em especial durante a Ditadura Militar. Também ignora que, até 1988, elas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para entrar na Justiça em defesa de seus direitos.
Tensão entre poderes
A votação de ontem na Câmara tornou-se mais um capítulo das tensões entre os três poderes. Lira pautou o projeto com o propósito explícito de pressionar o STF a recuar do julgamento. Defensores do PL alegaram que o tribunal estaria “usurpando” a competência do Congresso de legislar sobre o assunto.
“Eu acredito que, com essa votação aqui na Câmara, prevaleça o bom senso. O bom senso é o Supremo Tribunal Federal compreender que ele, o Supremo, deve agir como ‘julgador’. O STF existe para dirimir conflitos constitucionais, e não para legislar”, afirmou Arthur Maia. Ele disse que o STF segue o processo porque havia antes um “silêncio legislativo”, e que não seria mais o caso.
Agora, movimento indígena, políticos e governo estão em compasso de espera, porque a determinação final da corte deverá influenciar a tramitação do projeto e seu conteúdo, embora seja difícil prever o que de fato acontecerá. Ainda não é possível saber nem qual o teor final da decisão do tribunal nem qual será a posição do Senado.
Demonstração de força
Com o controle e o apoio da maioria da Câmara favorável ao PL 490 (ruralistas, bolsonaristas e “Centrão”), o placar da votação de ontem também converteu-se em mais uma demonstração de força de Lira diante de uma base governista ainda indefinida e de uma articulação política do Planalto criticada por todos os lados.
Isso porque o presidente da Casa marcou a votação da Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reestrutura o primeiro escalão da gestão federal, também para ontem, a dois dias de seu vencimento, dificultando ainda mais negociações sobre a proposta.
A apreciação foi adiada para esta quarta e não tinha sido concluída até o fechamento desta reportagem. Se a MP caducar, pastas serão desfeitas e a Esplanada dos Ministérios voltará ao desenho da administração de Jair Bolsonaro.
As manobras de Lira colocaram o governo ainda mais na defensiva. Nos corredores da Câmara, circulou que ele teria condicionado a votação da MP a uma votação rápida e sem alterações de conteúdo do PL 490. Publicamente, o presidente da Câmara e o “Centrão” cobram cargos e a liberação de verbas de emendas parlamentares pelo Planalto.
Marco temporal
Bolsonaristas e ruralistas alegam que a adoção do “marco temporal” apenas garante o direito à propriedade privada e que a competência dos antropólogos responsáveis pelos estudos de identificação das TIs seria abusiva, entre outros pontos.
“O PL 490 vai na contramão de tudo aquilo que o texto constitucional orientou”, argumentou o secretário executivo do ministério dos Povos Indígenas, Luís Eloy Terena, numa coletiva antes da votação.
“[A Constituição] reconheceu o direito originário dos povos indígenas e colocou como requisito a tradicionalidade [da ocupação da terra]. E o próprio texto constitucional traz esses requisitos. E entre esses requisitos não tem tempo, não tem data, mas é a forma como cada povo se relaciona com o seu território”, completou. Ele alertou que a adoção do “marco temporal” promoverá mais conflitos e disputas judiciais por terra, e não mais segurança jurídica, como defendem os ruralistas.
Discurso emocionante
O clima esquentou no plenário da Câmara. O início da sessão foi conduzido pelo 4ª secretário da Mesa, o ruralista Lúcio Mosquini (MDB-RO), que dificultou o encaminhamento de “questões de ordem” dos parlamentares críticos ao PL 490.
Num determinado momento, o vice-líder da Maioria Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE) aproveitou a situação para, nessa condição, orientar o voto a favor de um requerimento para continuar a análise da matéria. Segundo o procedimento usual, no entanto, ele deveria ter liberado os parlamentares para votarem como quisessem, porque não havia consenso entre os partidos do bloco sobre o assunto - governo e partidos mais à esquerda lutavam para retirar de pauta o projeto. Sob protestos, a orientação foi alterada e o voto foi liberado.
O discurso mais emocionante da noite, último antes da votação do PL 490, foi de Célia Xakriabá. Acompanhada de outras parlamentares e de Sonia Guajajara, ela pintou o rosto e as mãos de urucum na tribuna do plenário. Sonia foi à Câmara pedir a retirada de pauta da proposta (veja vídeo abaixo).
“Como vocês [parlamentares] querem ser lembrados nesse Brasil tão diverso? [Como] o povo brasileiro que tem origem de sangue indígena nas veias ou que tem origem de sangue indígena nas mãos?”, questionou Célia. “Matar não é somente atirar sobre povos indígenas. Matar é arrancar direito”, completou. Ela voltou a chamar o projeto de “genocídio legislado”. No final da fala, o grupo repetiu as palavras de ordem “Demarcação Já”.
pAs parlamentares imitaram o gesto do pensador Aílton Krenak, há 36 anos, na Constituinte. Ele pintou o rosto com tinta para reafirmar sua identidade indígena e chamar atenção para a defesa dos direitos dos povos originários.