Dados mostram que 38 Terras Indígenas superam a média nacional de alfabetização, mas lideranças apontam desafios na educação escolar indígena
Na primeira sexta-feira de outubro, às 12h, cerca de 200 indígenas Guarani da Terra Indígena Tenondé Porã (SP) foram à prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), para protestar pelo cumprimento do direito constitucional à educação escolar diferenciada e por melhorias na gestão dos Centros de Educação e Cultura Indígena (Ceci).
Horas antes, às 10h, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançava os dados do Censo 2022 sobre alfabetização, registros de nascimentos e características dos domicílios da população indígena no Brasil.
Enquanto os dados recém-lançados apontavam uma queda de 35% nas taxas de analfabetismo entre indígenas, além de ao menos 38 Terras Indígenas cujo índice de alfabetização superaram a taxa nacional (93%), na TI Tenondé Porã, os números trazem indicadores importantes, que podem apoiar na implementação da educação escolar indígena.
Confira quais são as 10 Terras Indígenas com a maior porcentagem da população alfabetizada:
Terra Indígena Peruíbe (SP)
Terra Indígena Xapecó (Pinhalzinho-Canhadão) (SC)
Terra Indígena Sete de Setembro (RO,MT)
Terra Indígena Jarudore (MT)
Terra Indígena Padre (AM)
Terra Indígena Muã Mimatxi (Fazenda Modelo Diniz) (MG)
Terra Indígena Ofayé-Xavante (MS)
Terra Indígena Estação Parecis (MT)
Terra Indígena Tekoha Itamarã (PR)
Terra Indígena Jaraguá (SP)
Além disso, eles também demonstram a importância do ensino da língua materna para garantir melhores índices de alfabetização entre indígenas, uma vez que o IBGE considera alfabetizadas as pessoas que saibam ler e escrever na língua que conhecem. É o que defende Kerexu Mirim, professora e liderança da TI Tenondé Porã, que contou sua experiência em ensinar em Guarani.
“A gente viu que a criança aprende mais rápido do que entrar na escola com seis sete anos e já inserir a língua portuguesa. Por isso a gente luta e está também fazendo experiências, fazendo materiais didáticos na nossa língua para auxiliar na alfabetização das crianças em Guarani, para depois inserir o português”, conta.
Segundo o Censo 2022, a TI Tenondé Porã possui mais de 90% de sua população alfabetizada.
Localizados na zona sul da cidade de São Paulo (SP), os 16 mil hectares da TI foram declarados como posse permanente dos Guarani em 2016, após décadas de luta pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e confinamento em apenas duas aldeias, de 26 hectares cada.
Com a demarcação e o processo de redispersão dos Guarani pelo território, a demanda por escolas cresceu, não só com relação aos Ceci, que atendem à faixa etária de 0 a 5 anos, mas também ao Ensino Fundamental e Médio, segundo as lideranças locais.
“O Ceci hoje já não é mais uma demanda de duas aldeias, são de 11 aldeias que estão inseridas no município [de São Paulo]. Então essa demanda que a gente traz há bastante tempo já é também desse reconhecimento do direito das crianças”, explica Karai Tataendy, liderança da TI Tenondé Porã. “A gente não está pedindo para fazer um Ceci em cada aldeia, mas sim que os equipamentos que estão já em nosso território se adequem ao nosso jeito, à nossa própria forma de entender a educação e que ela seja respeitada”, complementa.
Além de dois Ceci, a TI também conta com duas escolas estaduais indígenas, em que os indígenas lutam para efetivar uma educação específica, diferenciada, comunitária, intercultural e bilíngue – um direito conquistado pelos povos indígenas na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), entre outras normativas.
Avanços da alfabetização
Apesar dos desafios enfrentados pelos Guarani em São Paulo e por indígenas de norte a sul do Brasil pela efetivação de uma educação escolar indígena verdadeiramente diferenciada, o Censo 2022 aponta uma queda na taxa de analfabetismo entre indígenas em todo o país. Enquanto a porcentagem da população brasileira que não sabia ler nem escrever caiu 27% do Censo 2010 para o atual, a taxa de analfabetismo entre indígenas caiu cerca de 35%.
Além disso, considerando somente as TIs comparáveis, ou seja, aquelas em que já haviam sido alcançadas pelo Censo anteriormente, em 2022, mais de 90% das Terras Indígenas tinham mais de 50% de sua população alfabetizada, ante 60,6% em 2010. Isso significa um aumento de quase 50% no número de TIs que possuem a maior parte de sua população alfabetizada.
Para o IBGE, uma pessoa alfabetizada é aquela que consegue ler e escrever um bilhete simples ou uma lista de compras na língua que conhece, ou que utiliza o sistema Braille, uma forma de escrita tátil utilizada por pessoas com deficiência visual. “A pessoa não precisa estar frequentando a escola para ser alfabetizada”, afirma Marta Antunes, coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais - Alfabetização e Registros de Nascimento (Indígenas Censo 2022).
Os resultados do Censo indicam que todas as regiões apresentaram uma queda na taxa de analfabetismo entre indígenas, com destaque para a região norte, que teve uma queda de 51,2% das pessoas que não sabiam ler nem escrever, seguida pelo centro-oeste (38,8%); e sul (32,4%).
Já no âmbito municipal, as menores taxas de analfabetismo foram encontradas no Rio de Janeiro (3,1%), em São Paulo (4%) e no Distrito Federal (5,5%). A região sudeste, por sua vez, apresentou a menor taxa de analfabetismo no país entre pessoas indígenas (8,31%).
Ao contrário da média nacional, entretanto, a taxa de alfabetização entre mulheres apresentou um valor levemente abaixo em relação aos homens (1%) a partir da faixa etária de 35 anos.
Em todas as regiões, as quedas nas taxas de analfabetismo foram significativas entre os mais jovens. Nas faixas etárias até 39 anos, as taxas caíram pela metade, com avanços ainda significativos na faixa entre 40 e 44 (42%). Como nos dados gerais, a taxa de analfabetismo entre indígenas aumenta conforme o avanço na idade, principalmente nas faixas etárias a partir de 65 anos.
Na região Norte, onde houve a maior queda, as menores taxas de analfabetismo entre os indígenas se deram nos estados do Amapá (9,65%), Rondônia (12,88%) e Amazonas (14,06%).
Conquista do movimento indígena
No estado do Amazonas a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), organização representativa de 24 povos indígenas do Rio Negro, atua na promoção da educação escolar indígena. Melvino Fontes, do povo Baniwa e atual coordenador do departamento de educação escolar indígena da Foirn, atribui o avanço revelado pelo Censo 2022 à luta do movimento indígena pela valorização dos saberes tradicionais.
“A gente abraçou essa causa justamente para que de fato se pudesse ter nossos direitos preservados de acordo com o que nos garante a Constituição. Então dentro desse aspecto, a gente teve um salto muito positivo”, celebra Melvino. Ele também destaca que valorizar os saberes tradicionais não significa voltar atrás, mas fazer com que os conhecimentos indígenas e não indígenas possam caminhar juntos.
A dificuldade, segundo ele, está em garantir o respeito das secretarias de educação e outras instâncias governamentais aos modelos e projetos educativos dos povos indígenas no Rio Negro. “A nossa luta é para que se desenvolva a educação de baixo para cima, com a participação dos professores, alunos e comunidade nessa construção”, defende.
Morador da TI Tenondé, na capital paulista, Karai Tataendy, ponderou sobre a interpretação dos dados de alfabetização entre indígenas. Para ele, sem assegurar o direito à educação escolar diferenciada, se torna difícil fazer comparações baseadas em uma educação tradicional.
“Dentro das grandes cidades, por exemplo, não é a mesma coisa que em uma escola de campo, mesmo sendo de pessoas não-indígenas já tem essa diferença. Essa relação da vida, dos valores, é diferente. E em se tratando dos povos indígenas, é mais complexo ainda”, completou.
Assim como ele, Kerexu Mirim, professora da rede estadual de São Paulo e liderança na TI Tenondé Porã (SP) também partilha dos mesmos desafios e que as escolas indígenas guarani ainda sofrem com a imposição de estruturas e parâmetros curriculares estranhos a seus saberes e modos de existência.
“A gente deveria ter uma inscrição específica com temas específicos para nossa realidade, porque a gente que está na aldeia, não é que não entendemos o que acontece lá fora, mas vivemos uma realidade diferente”. Ela ainda complementa: “A gente quer uma educação diferenciada, porque a gente tem esse direito”.
É o que também busca Karai Tataendy: “O que a gente pede é só que seja respeitado mesmo esse direito ao ensino diferenciado que temos a garantia na Constituição Federal”.