Discussões se concentraram nos debates atuais sobre o não cumprimento de salvaguardas nos temas de mercado de carbono e projetos de REDD+
Lideranças indígenas e quilombolas, representantes de organizações da sociedade civil que atuam na pauta socioambiental e integrantes do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União participaram, no dia 22 de fevereiro, em Cuiabá-MT, do lançamento do livro “Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado.
O evento aconteceu no auditório da Fundação Escola Superior do Ministério Público, que abriu seu espaço para a oportunidade de aprofundar as discussões sobre a importância e os limites do direito de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais serem consultados sobre projetos que tragam impactos danosos aos seus territórios, conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovada em 1989 e em vigor internacionalmente desde 1991.
Lideranças dos povos indígenas Waurá Yawalapiti, Waurá Kisêdjê, Chiquitanos, Yudja, Bororo, Baikari, Terena, Tapayuna; e dos quilombos do Vão Grande e do Mata Cavalo ocuparam o espaço.
No caso específico do Estado de Mato Grosso, os participantes denunciaram que a ausência da consulta prévia também atinge os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais nos projetos privados e nos programas jurisdicionais de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável e Aumento do Estoque de Carbono (REDD+), e também no zoneamento socioeconômico ecológico.
Ao longo das 320 páginas da publicação, lideranças de comunidades tradicionais, advogados, militantes da luta socioambiental e pesquisadores analisam os efeitos de decisões proferidas por cinco tribunais regionais federais, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e suas consequências na vida das comunidades que, nos últimos anos, têm sido diretamente impactadas pela implementação de grandes empreendimentos, como hidrelétricas, rodovias e barragens, sem sequer serem consultadas.
A capa traz a força do trabalho da artista Daiara Tukano, parte de seu mural na exposição “Brasil Futuro”, com o nome “Bora lutar! Bora pra roça!”. A arte retrata uma mulher indígena com sua criança no braço, envolta de animais e da floresta. Com a mão esquerda, ela ergue um facão com a mensagem “Bora lutar”, expressando, de forma precisa, os esforços que povos e comunidades tradicionais empenham nos mais de cinco séculos de colonização. Bora lutar vem como um chamado necessário para um futuro anticolonial e decolonial.
Respeito à história ancestral
O advogado indígena e diretor da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), Ewésh Yawalapiti Waurá declarou que espera que o livro cumpra o importante papel de garantir a aplicação desse direito dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais.
“A Terra Indígena do Xingu tem um protocolo que orienta sobre o procedimento de aplicação do direito à consulta, mas, muitas vezes, talvez pela falta de conhecimento, esse direito é esquecido, não é aplicado, não é cumprido”, ressaltou a liderança, que também assina o texto do livro sobre o posicionamento do TRF da 1ª Região.
“Também estamos diante da ascensão do mercado de carbono, que vem crescendo cada vez mais, o que tem gerado bastante assédio sobre as comunidades indígenas. A consulta é importante para que os povos indígenas mostrem a necessidade de respeitar a nossa história e tudo aquilo em que nós acreditamos”, pontuou Ewésh, destacando a importância da consulta também nos projetos de REDD+ que compõem as estratégias de enfrentamento à emergência climática.
Advogada e assessora jurídica do ISA, Juliana de Paula Batista trouxe a preocupação sobre a postura do Congresso Nacional e do Judiciário diante do descumprimento do direito à consulta prévia, livre e informada.
“O que a gente tem visto é que os tribunais ainda têm uma jurisprudência incipiente sobre o tema, principalmente o STF, mas esperamos que se debrucem mais sobre isso nos próximos anos. Também pretendemos construir um pouco mais de elementos para que os tribunais possam decidir essa questão em consonância com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que está avançada e tem feito uma interpretação muito positiva sobre o direito de consulta”, destacou a advogada que no livro assina o texto sobre o papel do STF no tema.
Violação do direito à consulta atinge toda a sociedade
Silvano Chue Muquissai, indígena da etnia Chiquitano, chamou atenção para o fato de que, mesmo previsto na Convenção 169 da OIT e em outros instrumentos jurídicos normativos de proteção dos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais, o direito à consulta é sistematicamente violado.
Enfatizou, ainda, os danos dessa omissão para além das fronteiras das Terras Indígenas: “Os grandes empreendimentos construídos em nossos territórios não afetam só os povos indígenas, mas toda a sociedade. Então, esse direito, que é sermos consultados previamente e não no decurso do processo, não tem sido respeitado e, com isso, nós sofremos e vocês também sofrem. Hoje temos as emergências climáticas em decorrência do desrespeito aos direitos ambientais e a esse nosso direito que continua sendo violado”, denunciou Silvano, que, no livro, é autor do texto que faz uma análise decolonial da atuação do STJ.
A advogada popular Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa elaborou sua fala com uma referência à arte de Daiara Tukano “Bora lutar! Bora pra roça!”.
“Parece que são coisas distintas, mas não são, porque o Direito não está só na luta, mas na roça também. Aparentemente a roça é um ato ordinário, corriqueiro, que se faz diariamente, mas os atos do Judiciário também têm que constituir um espaço de luta. E se não é, a gente vai correr atrás para ser”.
No livro, Loyuá assina o capítulo que analisa as decisões do STJ sobre o direito à consulta livre, prévia e informada. “Isso atinge diretamente os povos indígenas inclusive na roça, como no caso de um empreendimento de uma BR que passa dentro de uma Terra Indígena e vai impactar fortemente no acesso à alimentação e na questão espiritual”.
Narrativas do interior
Pedro Paulo Rodrigues da Silva, jovem liderança do Quilombo do Vão Grande, escritor e artista, compartilhou a luta de sua comunidade contra a instalação da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) de Jauquara, no Estado de Mato Grosso, e o processo de elaboração do livro Narrativas do Interior.
Também apresentou o Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado do Quilombo do Vão Grande. “Na ideia de escrita do livro, também tivemos a ideia de elaborar o protocolo, porque a PCH de Jauquara surgiu sem consulta. Fizeram um treinamento, umas pesquisas com drone sem ninguém saber o que estava acontecendo e, do nada, surgiu a história de que seria construída uma PCH, sem qualquer autorização da comunidade. Ninguém foi consultado para que fosse construído esse tipo de empreendimento”. Segundo ele, o livro e o protocolo foram formas de mostrar que ali “tem tradição, tem povo, tem comunidade, têm crianças”.
O defensor regional de Direitos Humanos de Mato Grosso e autor do livro, Renan Sotto Mayor fechou as falas abordando os desafios da luta em defesa dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais e os danos causados pelo descumprimento do direito à consulta prévia e por outras violações.
“A Constituição Federal, no artigo 232, confere a legitimidade ativa para os povos indígenas tutelarem seus direitos. A gente precisa ter essa noção. E é triste a gente ver a jurisprudência dos nossos tribunais; e esse livro é um marco para explicitar e mostrar para os desembargadores, juízes e ministros”, ressaltou.
Para Renan, essa luta tem que ser coletiva: “Todos defensores e defensoras de direitos humanos têm que mostrar isso tudo que está nesse livro e bora lutar. E lutar por direitos humanos não é fácil num país como o Brasil. Não podemos aceitar a terceirização, temos que batalhar e exigir consulta prévia, livre e informada feita pelo Estado”.
Mulheres protagonizam luta contra hidrelétrica
A história de Teresa, Benedita e Jurema (mãe e filhas), mulheres negras moradoras da região de Água Fria, em Chapada dos Guimarães, é o fio condutor do curta-metragem “Mansos”, cujo teaser foi apresentado no intervalo dos debates do lançamento do livro. As três vêem a sua vida ser completamente transformada com a construção de uma usina hidrelétrica e com o assassinato de Teresa (uma referência à líder do Quilombo Quariterê, Teresa de Benguela), agricultora familiar e líder comunitária, na frente de suas duas filhas quando ainda crianças. Vinte anos depois, Benedita e Jurema, já adultas, confrontam aquele que é o responsável pela tragédia.
O curta de ficção tem roteiro e direção da cineasta Juliana Segóvia e produção do Aquilombamento Audiovisual Quariterê, que também faz uma explícita homenagem ao quilombo liderado por Teresa de Benguela. Segundo Juliana, a questão da memória e do apagamento da história da população negra em Mato Grosso e no país é a base da concepção do filme. “O curta-metragem é uma ideia que nasceu a partir de uma conversa com uma moradora local, da região de Manso. Ela trazia em sua narrativa o que aconteceu com bem mais de 1.070 famílias, que eram moradoras da região e foram obrigadas a saírem de suas terras por conta da implementação de uma usina hidrelétrica”.
Embora seja uma ficção, na avaliação da cineasta, o filme tem relação direta com o tema do direito à consulta prévia, livre e informada, pois o fato que serviu de base para a sua concepção foi resultado de um mega empreendimento construído sem ouvir a comunidade envolvida. “A história retrata um crime ambiental, que não teve uma resposta na dimensão do que ocorreu com aquelas famílias. E eu acho que devemos utilizar o cinema como aliado dessa luta territorial, que envolve povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, finalizou.