Em audiência pública, cerca de 200 lideranças pediram ações concretas para garantir direitos constitucionais e preservar seu modo de vida tradicional
Na última quinta-feira (28/11), aproximadamente 200 quilombolas de diversas comunidades do Vale do Ribeira representaram seus territórios ocupando o Auditório Teotônio Vilela da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).
Sob o mote “Regularização Fundiária Quilombola: ‘Semear o futuro com planejamento e reparação histórica”, eles reivindicaram o andamento dos processos de titulação das comunidades e a implementação de políticas para garantir os direitos fundamentais, como acesso à saúde, educação, energia e estradas de qualidade, que permitam o ir e vir.
Entre as outras demandas colocadas na pauta, esteve também a reformulação do Grupo Gestor instituído pelo Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta (Decreto nº 41.774/1997).
O evento, organizado pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), em conjunto com a Coordenação Estadual da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ-SP), as frentes parlamentares do PT, PCdoB e PV e da Rede e PSOL e o Grupo de Trabalho Fundiário de lideranças quilombolas do estado, foi construído para denunciar a morosidade extrema nas titulações dos territórios e pedir providências efetivas.
O direito quilombola à titulação do território está previsto no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 e na Lei paulista nº 9.757/1997. Contudo, passados 36 anos de vigência da Constituição e 27 anos da lei paulista, o Governo do Estado de São Paulo titulou integralmente apenas dois territórios quilombolas, sendo que outros sete foram titulados parcialmente.
A reunião destacou ainda o papel da regularização como uma ferramenta indispensável para a garantia de direitos e a preservação da história e da cultura dessas comunidades, que são responsáveis, por meio de seus modos de vida e práticas tradicionais, por preservar a floresta em pé – serviço socioambiental fundamental no contexto de emergências climáticas.
“Agora é a vez dos quilombolas”
André Luiz Pereira de Moraes, liderança do Quilombo André Lopes e articulador da EAACONE abriu a segunda mesa “A luta quilombola no estado de São Paulo pela titulação”. Ele compartilhou que fazia dez anos que não havia audiência pública daquele tipo na Alesp, mas que era de suma importância estar ali.
“É a partir daqui que é pensada as leis, que é pensado a questão orçamentária, que é pensado as políticas públicas que vai nos beneficiar. Nós estamos com bastante dificuldade no estado de São Paulo de essas políticas públicas chegarem até as Comunidades Quilombolas. E uma das políticas públicas que é um dos eixos principais nossos aqui é a questão da regularização fundiária”, afirmou.
“O governo brasileiro, seja ele estadual, municipal ou federal, ele tem uma dívida muito grande com o povo negro do Brasil por conta do processo de escravidão que houve no Brasil. O que nós estamos fazendo hoje, nós não estamos pedindo favor pra ninguém, mas para vir reivindicar o que é direito nosso!”, completou.
Tania de Moraes, do Quilombo Ostra, coordenadora na EAACONE contou que estar ali era um processo difícil, visto que as regras vão mudando com o passar dos meses. “A gente vai resistindo, vai tentando conversa, diálogo, seja em processo, em impedimentos, mas a gente vê que é cada passo. Primeiro é uma conversa, depois é um levantamento, um diálogo, uma construção. A gente luta por isso, esse contexto todo para que esse processo venha diminuindo e todas comunidades sejam reconhecidas em menos tempo possível”, disse.
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Moraes trouxe o dado que, dos 31 municípios da região do Vale do Ribeira em São Paulo e no Paraná, 11 têm Comunidades Quilombolas. A região possui 80% dos quilombos do estado de São Paulo. Segundo ela, o mesmo estado levou 25 anos para titular parcialmente sete quilombos e integralmente dois.
No ritmo atual, seriam necessários aproximadamente 150 anos para titular os 54 quilombos restantes no estado de São Paulo. Sobre a demanda de reestruturar o Grupo Gestor de Quilombos, o articulador da EAACONE acrescentou que isso deve ser feito com participação efetiva de representantes quilombolas junto às instituições públicas e um orçamento adequado.
Luiz Francisco Melo, do Quilombo de Porcinos, em Agudos, e da CONAQ falou da importância de deliberar pautas de interesse nacional, estadual e municipal com os sujeitos de direito, em respeito à Convenção 169 da OIT, que reconhece o direito fundamental à consulta prévia, livre e informada de comunidades tradicionais.
“Nós não vamos permitir deixar as nossas tradições, os nossos costumes, os nossos saberes, porque muitos e muitas, tanto as universidades, os doutorados, os sábios têm aprendido com nós, que temos receitas de [...] muitas coisas que estão se perdendo pelo desmatamento, pelo inundamento de barragens. Nós somos os guardiões da floresta!”, lembrou.
Melo advertiu a Fundação Instituto de Terras de São Paulo (ITESP) sobre a destinação dos recursos. “O que mais interessa pra nós? Titulação de terras. ITESP, sua função você sabe, deixou bem claro o interesse de outros, mas agora é a vez dos quilombolas”, expôs. “O estado de São Paulo está deixando a desejar. Uma vergonha! Bahia titula, Maranhão titula [...] Chega de falar que não tem dinheiro. [...] Cadê o dinheiro do INCRA, que cuida do pobre? Vamos balancear a coisa? Colocar um pouquinho para cada um?”, reforçou.
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Por fim, Melo também somou esforços para pedir a volta da subcomissão dos quilombos na casa. Segundo ele, durante a atuação, eles avançaram bastante em questões de formação dos quilombolas, de empoderamento político, só não em titulação porque não depende só deles.
Outras lideranças, como Dona Diva (Quilombo Pedro Cubas de Cima); Benedito Alves da Silva (Ditão), Rodrigo Marinho e Laudessandro (Ivaporunduva); Neimar Lourenço dos Santos e Seu Antônio (Quilombo Caçandoca); Zeca (Quilombo de Poça) e Nodir Dias (Quilombo São Pedro e da Cooperquivale) também falaram sobre educação, a luta quilombola na época da ditadura, a influência do agronegócio nos órgãos públicos, titulação e desenvolvimento das Comunidades Quilombolas, a importância de não dispersar a luta e da representatividade política.
Frente parlamentar
Leci Brandão (PCdoB), Marcia Lia (PT) e Simão Pedro (PT), deputados estaduais, se somaram à discussão. Leci Brandão aproveitou a sua fala para criticar a ausência do Governo do Estado e seus secretários na sessão, assim como a mudança do ITESP e da pauta da Secretaria da Justiça para a Secretaria da Agricultura. Também, falou sobre a folclorização dos quilombolas, cujas origens estão no racismo e na manutenção de privilégios da elite brasileira, e colocou mais uma vez o seu mandato à disposição para ajudar.
Já Marcia Lia defendeu a titulação com o argumento da segurança jurídica, endossado em outros momentos da audiência, e protestou contra a Lei 17.557/2022, conhecida como a “Lei da Grilagem”, que beneficia latifundiários com um desconto de até 90% de desconto no valor final das terras públicas ocupadas ilegalmente.
Simão Pedro citou o racismo ambiental como um empecilho para as titulações, visto que o estado tem, sim, sido ágil para titular terras de grileiros. Essas barreiras atingem a segurança jurídica, mas também o modo de vida quilombola, que experimenta impactos negativos na saúde e na educação. Segundo ele, a garantia ao território é fundamental para preservação da cultura e isso será alcançado com mobilização, pressão e luta.
Poder público
Estiveram presentes também Elvio Aparecido Motta, da Superintendência Federal do Desenvolvimento Agrário de São Paulo; Maria Cristina Tarrega, gestora da recém criada Divisão de Territórios Quilombolas do INCRA São Paulo; Thiago Francisco Gobbo diretor adjunto de Regularização Fundiária e Andréa João assessora de Quilombos e outras Comunidades Tradicionais do ITESP; Rodrigo Luiz de Azevedo, assessor parlamentar do gabinete da Secretaria de Agricultura e Abastecimento; e Eduardo Baecker, coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial e de Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais da DPE (NUPIR) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O INCRA expôs a dificuldade de estrutura dentro do órgão, justificando que a equipe é pequena, mas que estão lutando para levar o trabalho adiante e dar maior transparência ao processo como um todo, citando, inclusive, um grupo do WhatsApp com lideranças quilombolas de São Paulo. Disse ainda que está se esforçando para aprovar seis RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação), e citou os três decretos que serão publicados a favor das Comunidades Quilombolas: São Pedro, Galvão e Porto Velho, todos nos municípios Eldorado e Iporanga, em São Paulo.
Já o ITESP recuperou o encontro do dia anterior à audiência de representantes da CONAQ e EAACONE com o Secretário de Agricultura, Guilherme Piai, onde ficou acordado que a Procuradoria Geral do Estado, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística e a Secretaria de Agricultura deverão constituir uma comissão para tratarem sobre as titulações dos territórios quilombolas com reuniões, a cada quatro meses, com ITESP e comunidades, e reforçou que ainda em 2024 irão titular duas comunidades, Pedro Cubas integralmente e Praia Grande parcialmente.
Ainda, após provocação das Comunidades Quilombolas, pela primeira vez o ITESP apresentou um cronograma, ainda que parcial, das titulações dos territórios quilombolas, indicando que até 2027 trabalharão para titular 11 comunidades no Vale do Ribeira que, segundo Piai, os territórios escolhidos são aqueles em que há menos situações de conflitos fundiários. No entanto, esse planejamento não foi feito com as Comunidades, e segundo o secretário e o ITESP, podem ser alterados por sugestão das mesmas.
Outro ponto foi relacionado ao orçamento. O Secretário de Agricultura afirmou que não tem recursos para fazer as titulações avançarem e pediu às comunidades que o ajudassem com esse tema, inclusive para disponibilização de recursos via emenda parlamentar. Representantes do ITESP e da Secretaria de Agricultura afirmaram que estão trabalhando para a realização de um concurso no órgão, e que a Secretaria não tem pessoal e estrutura para viabilizar um trabalho mais célere.
“As respostas dadas estão longe de fazer frente às demandas por titulações e a programação apresentada na reunião é uma iniciativa inicial e, ainda, tímida frente à demanda. O tratamento desigual e injustificável dado pela Secretaria e pelo ITESP para viabilizar a titulação de não quilombolas precisa ser revisto, e quilombolas precisam ser tratados com prioridade no órgão e na Secretaria de Agricultura para que as titulações avancem”, expôs Fernando Prioste, assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA).
A Superintendência Federal do Desenvolvimento Agrário de São Paulo, na pessoa de Elvio, disse que posicionamentos como o da Defensoria Pública ajudam a direcionar a ação dos governos, e resgatou que as comunidades quilombolas passaram praticamente seis anos com ausência de políticas públicas. Mas a reconstrução do MDA e da divisão quilombola do INCRA ocorreram por uma reivindicação das Comunidades. Segundo ele, o concurso do INCRA vai ser um avanço, um novo momento e uma nova possibilidade para esse grupo social.
“Lutaremos para que as próximas gerações tenham o direito à terra efetivado”
Para finalizar a audiência, Edna Ferreira (Comunidade Abobral Margem Direita, que aguarda a publicação do Relatório Técnico Científico pelo ITESP há anos) e Ataíde (Quilombo Pedro Cubas de Cima), fizeram a leitura da carta com todas as reivindicações expostas ao longo do encontro.
“A falta de titulação dos nossos territórios afeta diretamente nosso modo de vida, nossa cultura, nossa forma de trabalhar, viver, criar e ser feliz [...] Nossa identidade como quilombola fica ameaçada, e muitos dos nossos, como Carlito do São Pedro, Laurindo de Praia Grande, e a Mãe Bernadete, da CONAQ, são assassinados quando ousam lutar por terra.”, diz a carta.
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“Nós vamos continuar mobilizando nosso povo, mas também precisamos de apoio dos deputados e das organizações parceiras e, em especial, o Ministério Público do Estado de São Paulo, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União atuem de forma coordenada, no âmbito de suas competências, para que nossos territórios sejam titulados”, pediu.
“Nossos antepassados lutaram para que nós, quilombolas, pudéssemos chegar até aqui. E nós, hoje, lutaremos para que as próximas gerações tenham o direito à terra efetivado”, finalizou o documento.
Leia a carta na íntegra aqui.