Workshop no FIB 2025, em Salvador (BA), discutiu desafios e caminhos para garantir conectividade nos territórios indígenas a partir das vozes e experiências do Rio Negro
Nesta quinta-feira (29/05), a Rede Wayuri promoveu o workshop Teias de Conexão: Retrato da Conectividade nas Comunidades Indígenas durante a 15ª edição do Fórum da Internet no Brasil (FIB), realizado em Salvador (BA). Promovido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o evento reuniu sociedade civil, governo, comunidade acadêmica e tecnológica e o setor empresarial para discutir a internet no Brasil.
A mesa foi composta por André Fernando Baniwa, escritor e assessor técnico de Medicinas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI); Edson Gomes Baré, liderança do povo Baré e diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn); Alberto Fernandes, técnico de informática e telecomunicações; e Nicole Grell, doutoranda em Relações Internacionais e pesquisadora do projeto ProIndL, do Center for Artificial Intelligence da USP. A mediação ficou por conta de Ray Baniwa, comunicador da Rede Wayuri e doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ.

A proposta partiu do entendimento do acesso à internet como um direito humano fundamental e uma ferramenta estratégica para a promoção da autonomia, preservação cultural, segurança e gestão territorial. O evento proporcionou o diálogo sobre os impactos da conectividade nas comunidades indígenas, tendo como recorte região do Médio e Alto Rio Negro - que abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira - a partir das experiências com a implementação do projeto de inclusão digital promovido pela Foirn.
Os primeiros pontos de internet banda larga chegaram às comunidades da região há cerca de 10 anos, por meio do programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac), do Governo Federal. Edson Baré relembrou que, antes disso, a radiofonia era a principal ferramenta de comunicação entre as mais de 750 comunidades distribuídas ao longo de mais de 13 milhões de hectares. A conexão à internet via satélite, segundo ele, trouxe avanços significativos nas áreas da saúde, educação e segurança.
“A gente percebeu que a chegada da internet colaborou muito com as escolas e com a saúde indígena. Na época, aproveitamos os pontos do Gesac para também fazer nossas atividades institucionais, reunir com lideranças, e vimos que facilitava. Foi um avanço bastante relevante, pois conseguimos dialogar para o controle de problemas que tínhamos nas comunidades. Antes, nossa comunicação era por recado, depois chegou a radiofonia. A remoção de pacientes muitas vezes levava dias. Com a internet, agilizou o processo. A comunicação nessa parte é bastante importante para nós, e estamos estudando como expandir e manter esses equipamentos em funcionamento”, destacou Edson.

O diretor da Foirn chamou atenção para a responsabilidade assumida pelo movimento indígena diante da ausência de políticas públicas efetivas do Estado para a região. Por falta de manutenção, a maioria dos pontos do Gesac deixou de funcionar, e a atuação da Foirn com a implementação das antenas Starlink, há cerca de três anos, foi a alternativa encontrada para preencher esse gargalo. “Na ausência do Estado, nós tomamos a frente. Não é nosso papel, nós somos controle social. Mas quando não há políticas, assumimos esse papel com o apoio dos nossos parceiros”.
Foram mais de 200 pontos de internet instalados na região, em um projeto marcado por inúmeros desafios, não apenas logísticos, mas também financeiros. O alto custo das antenas e das mensalidades está entre os obstáculos enfrentados em um território extenso e de difícil acesso, agravado tanto pela dependência de captação de recursos externos quanto pela ausência de políticas públicas que viabilizem o acesso a tecnologias de operadoras de satélite de baixa órbita nacionais, por exemplo, a custo menores.
“A questão dos dados e da nossa segurança com relação ao uso da Starlink também são preocupações que discutimos, mas fazemos o possível com as soluções que estão ao nosso alcance diante de uma necessidade urgente”, afirmou Edson.
O diretor finalizou sua fala reforçando que as políticas e implementações de inclusão digital, assim como seus benefícios, desafios e impactos, precisam ser discutidas pelos e com os povos indígenas, a partir de suas realidades e modos de vida. “É importante esse olhar para os povos tradicionais, especialmente para nós que estamos no Norte e sempre somos deixados de fora”.
Responsável pela instalação das antenas, Alberto apresentou uma perspectiva técnica do processo e os desafios logísticos em uma região sem estradas, onde a única forma de acesso às comunidades é pelos rios.
Nos trechos de cachoeira, explica o técnico, é necessário descarregar o bote e fazer a travessia carregando a embarcação por terra ou puxando pelas pedras, dependendo do nível do rio e da época do ano. O ritual de descarregar o bote, atravessar as corredeiras e recarregar novamente pode se repetir várias vezes, conforme a localidade de destino. “É uma logística que pode levar quatro, cinco dias, o que aumenta muito o custo”, disse ele.
O processo de instalação e testagem dos equipamentos, segundo Alberto, envolveu os membros das comunidades, como forma de capacitá-los não apenas para o uso, mas também para a manutenção básica dos aparelhos. “Sabemos que a internet pode trazer coisas boas e ruins, por isso é preciso mostrar os dois lados e capacitá-los para que se protejam. Então não é só chegar, instalar e voltar, como já foi feito no passado”.
Conectividade com protagonismo comunitário
Durante sua participação, André Baniwa destacou o papel estratégico da conectividade no fortalecimento dos saberes tradicionais e na promoção de uma educação intercultural e intercientífica no Rio Negro. Para ele, a internet pode ser aliada na valorização da medicina tradicional e no diálogo entre os conhecimentos indígenas e outras formas de ciência.
Ele contextualizou esse momento como parte de um processo de “reconstrução do bem viver indígena”, iniciado com a Constituição de 1988, que garantiu direitos fundamentais aos povos originários e abriu caminho para a retomada de suas línguas, crenças e práticas. “Depois de séculos de violações, é a partir desses direitos que os povos indígenas estão reconstruindo seus projetos de vida com autonomia”, afirmou.
André compartilhou a experiência da Escola Baniwa e Koripako, no Alto Rio Negro, onde estudantes realizam pesquisas na internet para aprofundar os conhecimentos sobre plantas medicinais mencionadas por pajés e sabedores da comunidade. Ao cruzarem os nomes tradicionais com os científicos, produzem materiais sistematizados que fortalecem a medicina tradicional com o apoio das tecnologias digitais. “Estamos construindo formas de ensinar e aprender que respeitam nosso jeito de viver e pensar o mundo”, completou.
Ele também defendeu a necessidade de políticas públicas que considerem as especificidades culturais dos povos e reforçou que a conectividade, para ser uma ferramenta de transformação, deve ser pensada a partir dos territórios e com a participação ativa das comunidades. Ao final, destacou que o desenvolvimento sustentável e inclusivo passa necessariamente pelo reconhecimento e protagonismo dos povos tradicionais.
Tecnologia e saberes tradicionais
A partir de uma perspectiva acadêmica, a pesquisadora Nicole Grell trouxe reflexões sobre os desafios e oportunidades no uso da tecnologia em contextos indígenas, com base em sua atuação no projeto de Fortalecimento das Línguas Indígenas Brasileiras com IA.
Nicole destacou que, mesmo em comunidades onde a língua indígena ainda é predominante no cotidiano, o contato com a internet tem gerado impactos importantes. “O que a gente percebeu em diversas aldeias foi que, mesmo onde a língua indígena ainda é a língua materna, na hora de escrever no WhatsApp ou nas redes sociais, a língua que prevalece é o português”. Para ela, isso pode representar um risco à continuidade da própria língua, especialmente entre os jovens.
Diante de uma demanda que já se apresentava para a tradução de documentos, como a tradução da Constituição Federal para o Nheengatu, realizada pela Academia Nheengatu de Letras, o projeto iniciou uma articulação com a Foirn, com base em uma consulta prévia, livre e informada, para entender se havia interesse das comunidades no desenvolvimento da tecnologia.
O projeto no Rio Negro está em desenvolvimento junto às comunidades Baré, cuja língua original foi extinta e absorveu o Nheengatu. O objetivo da Foirn é implementar a tecnologia de escrita em cerca de 200 escolas, nas três línguas cooficiais da região: Nheengatu, Baniwa e Tukano.
Ao encerrar, Nicole ressaltou que tratar de línguas indígenas no Brasil envolve também o reconhecimento de contextos sagrados e históricos de resistência.
Línguas indígenas e os desafios digitais
Ray Baniwa, integrante da Rede desde sua criação, reforçou a importância da comunicação feita “por nós e para nós” como instrumento de fortalecimento político, cultural e social. “Ao propor o workshop Teias de Conexão, nós buscamos promover um espaço de escuta, troca de experiências e construção coletiva de reflexões sobre os caminhos da conectividade nos territórios indígenas, a partir dos nossos próprios territórios”, disse.
Para ele, a mesa demonstrou, na prática, o valor de uma discussão conduzida a partir deste lugar. Tanto a iniciativa da Rede quanto a de tantos outros coletivos e organizações da sociedade civil que abordaram a temática de conectividade, territórios e meio ambiente no FIB15, servem como exemplo para o Estado de como o uso das tecnologias e o acesso à internet já vêm sendo debatidos com qualificação dentro dos territórios, com suas próprias demandas e soluções, conforme cada realidade.
O anúncio feito pelo Ministério das Comunicações no primeiro dia do evento, por exemplo, sobre o desenvolvimento do Plano Nacional de Inclusão Digital, foi alvo de críticas por setores da sociedade civil presentes exatamente por ser anunciado com desmobilização de sua estrutura inicial, com redução de seis para dois grupos de trabalho temáticos. Além disso, os dados que fundamentam a construção do plano são considerados defasados, levantando questionamentos sobre sua capacidade de contemplar a diversidade de contextos e as grandes extensões das várias Amazônias e dos vários Brasis dentro de um país com extensões continentais.
Como garantir a participação social de públicos historicamente invisibilizados em 90 dias, prorrogáveis por mais 90? Pisar nesses mesmos chãos, ouvir quem neles vive e garantir que a inclusão digital seja também inclusão política, cultural e social, com respeito, autonomia e soberania popular, deve ser o grande compromisso do Estado na construção de políticas públicas de conectividade efetivas.
Protesto
Ao encerrar a mesa, Edson Baré chamou atenção para os constantes projetos que atacam os direitos indígenas e o meio ambiente, como o PL da destruição, o marco temporal e a desestruturação do processo de demarcação de Terras Indígenas. “Nós vamos nos levantar, nós não vamos ver sentados o que eles estão fazendo. Dizemos a todos vocês: não ao marco temporal e demarcação já!”.