Episódios gravados por jovens e lideranças indígenas em Santa Isabel do Rio Negro e Iauaretê, no Amazonas, começaram a ser divulgados esta semana. Narrativas trazem conhecimentos ancestrais e histórias de vida
Dona Maria Lucélia, povo Desana, de nome indígena Diakarapo, nasceu na comunidade Pakowa, na Colômbia, e cresceu na comunidade Yai Boha, Santa Marta, rio Papuri, no Brasil. Lá passou pelo processo de benzimento e desde cedo recebeu orientações do pai. Ela se mudou ainda jovem para Iauaretê, distrito de São Gabriel da Cachoeira (AM), para dar continuidade aos seus estudos no internato salesiano junto com outras 600 internas. É uma conhecedora de histórias ancestrais.
Roberto da Silva é do povo Baré e nasceu em 1961. Educador das comunidades da região do Médio Rio Negro, passou parte da juventude pelos piaçabais, o que marcou sua história de vida. É morador da comunidade Jerusalém, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
Essas e outras histórias – contadas em primeira pessoa e registradas por indígenas do médio e alto rio Negro – estão disponíveis no podcast Guardiões da Memória do Rio Negro, projeto desenvolvido pelo Museu da Pessoa com a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro.
O lançamento aconteceu na quinta-feira (21), dentro da programação “Memórias Ancestrais”, agenda do Museu da Pessoa na Primavera dos Museus. Os áudios podem ser encontrados nas redes sociais do Museu da Pessoa e da Rede Wayuri.
Os episódios serão disponibilizados quinzenalmente, até o final do ano. Escute no Spotify:
Os comunicadores registraram narrativas e histórias em Iauaretê, no rio Uaupés, e Santa Isabel do Rio Negro. Os principais temas foram o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN) e a Cachoeira da Onça, em Iauaretê, ambos registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Foram ouvidas 27 pessoas em comunidades do médio rio Negro e 35 em Iauaretê. Muitos dos entrevistados são os próprios pais, mães, avôs, avós, tios e tias dos jovens participantes.
Por meio das histórias de vida, aparecem a riqueza cultural, a tradição, a resistência e a exploração colonizadora que passa por piaçabais e a opressão religiosa, entre outros. A produção do podcast teve início em 2022. Este ano, a Rede Wayuri foi convidada a integrar o projeto com a realização de uma oficina de comunicação para ações de divulgação.
Comunicadora da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, do povo Baré, participou de encontros em Santa Isabel do Rio Negro e em Iauaretê. “Quando fomos convidados, até fiquei com um pouco de receio, pois sabemos da importância do Museu da Pessoa. Mas tive o apoio da Rede e segui em frente”, diz.
Ela desenvolveu as atividades junto com os jovens e lideranças que já integravam o projeto. O resultado foi uma intensa troca de saberes. “Percebi que muitos estavam com dúvidas sobre como gravar os áudios, como fazer os roteiros. Fomos fazendo juntos e aprendendo”, relata.
“É um grande projeto, que nos ajuda a perceber que às vezes a gente mesmo, que vive aqui, não conhece as nossas histórias. Quando ouvi as narrativas, resgatei memórias da minha própria história. Outro grande desafio foi fazer os registros nas línguas indígenas. Em Iauaretê, a maioria dos áudios estavam na língua tukano e foi necessário irmos atrás das traduções. Foi uma troca de saberes”, completou.
Histórias de vida também são patrimônios
A Rede Wayuri tem um programa de rádio semanal, o Papo da Maloca, que divulga informações do movimento indígena e sobre outros temas de interesse dos povos do rio Negro. Além disso, o coletivo mantém o podcast Wayuri e o Instagram da Rede.
São 19 bolsistas e cerca de 40 voluntários indígenas dos povos Wanano, Baré, Tukano, Hupd´däh, Yanomami, Piratapuia, Hupd´äh, entre outros. Eles atuam a partir de São Gabriel da Cachoeira e das comunidades indígenas do extenso território do rio Negro.
A série de podcast está inserida no projeto Memória, Território e Patrimônios Imateriais do Rio Negro, desenvolvido em parceria entre o Museu da Pessoa, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e organizações indígenas locais.
Esses episódios foram idealizados e produzidos pelos Guardiões da Memória – jovens e lideranças que participaram do projeto - em parceria com a Rede Wayuri, que é ligada à FOIRN e tem o apoio do ISA.
O projeto é coordenado pela antropóloga Aline Scolfaro. As oficinas tiveram também a participação da coordenadora do programa Vidas Indígenas do Museu da Pessoa, Márcia Trezza.
“Acredito que, com a execução desse projeto, foi possível reforçar a ideia de que as pessoas e suas histórias de vida não só fazem parte dos domínios que constituem e dão sentido aos patrimônios, mas são também em si um patrimônio a ser salvaguardado”, diz Aline.
Comunicador e Guardião da Memória, Rogério Xavier, povo Baniwa, que vive na comunidade de Cartucho, médio Rio Negro, trouxe a importância do registro das narrativas para a valorização das vivências.
“Com esse trabalho, a gente começou a se dar conta do valor dessas histórias, do valor da cultura, da floresta, desse rio. Acho que a maioria aqui não se dava conta, apenas ia vivendo”, disse.
O Museu da Pessoa é um museu virtual e colaborativo de histórias de vida. Nos últimos anos, vem buscando ampliar sua atuação junto a povos indígenas e outras populações tradicionais, visando contribuir com a luta indígena e a pauta socioambiental, através de projetos de memória desenvolvidos de forma colaborativa.
Além do podcast, também foram produzidos vídeos curtos e dois documentários com trechos das histórias de vida registradas em Iauaretê e Santa Isabel do Rio Negro E ainda o livro “Um rio de raízes e memórias”, com histórias dos detentores do Sistema Agrícola no Médio Rio Negro. Todos esses produtos resultantes do projeto foram disponibilizados ao público dentro da programação da Primavera dos Museus.