Presidente definiu instituição da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola como “pagamento de dívida histórica que a supremacia branca construiu nesse país”
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta segunda-feira (20/11), Dia da Consciência Negra, no evento “Brasil pela Igualdade Racial”, o Decreto 11.786/2023, que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ).
A política contribuirá para a conservação da sociobiodiversidade, a proteção do patrimônio cultural, o fomento de políticas públicas e a garantia de direitos territoriais e ambientais das comunidades quilombolas. Ela compõe um pacote de 13 medidas promovidas pelo Governo Federal para celebrar a data, que é um marco histórico da resistência negra no Brasil.
Entre as medidas, estão programas nacionais, titulações de territórios quilombolas, bolsas de intercâmbio, acordos de cooperação, grupos de trabalho interministeriais, e outras iniciativas que garantem ou ampliam o direito à vida, à inclusão, à memória, à terra e à reparação.
“O que nós fizemos aqui hoje é o pagamento de uma dívida histórica, que a supremacia branca construiu nesse país desde que esse país foi descoberto, e que nós queremos apenas recompor aquilo que é a realidade de uma sociedade democrática”, afirmou o presidente.
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola
Estruturada em cinco eixos (integridade territorial, usos, manejo e conservação ambiental; produção sustentável e geração de renda, soberania alimentar e segurança nutricional; ancestralidade, identidade e patrimônio cultural; educação e formação voltadas à gestão territorial e ambiental e organização social para a gestão territorial e ambiental), a PNGTAQ tem previsão orçamentária de mais de R$ 20 milhões.
A política se propõe a promover práticas de gestão territorial e ambiental desenvolvidas pelas comunidades quilombolas, atuar para garantir os direitos territoriais e ambientais dessas comunidades, favorecer a implementação de políticas públicas de forma integrada, proteger o patrimônio cultural material e imaterial, conservar a biodiversidade e fomentar seu uso sustentável, e ainda, promover a melhoria da qualidade de vida e a justiça climática.
“Essa política a gente já está brigando por ela desde 2013 e estamos realizando um sonho”, disse o coordenador de articulação nacional Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional da Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
“Embora a gente saiba que o governo está num processo de reestruturação, vale lembrar que boa parte da política anunciada já estava encalhada ao longo dos [últimos] seis anos e que hoje [20/11] abriram-se as porteiras para que essas políticas saíssem do papel”, relembra Rodrigues.
De acordo com o Ministério da Igualdade Racial (MIR), as primeiras ações da PNGTAQ acontecerão no Território Étnico de Alcântara no Maranhão, nos territórios de Vidal Martins, em Santa Catarina e Rio dos Macacos, na Bahia. “São territórios em que já temos orçamento do MIR previsto para implementação de Planos de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola em 2024. Além deles, outros territórios titulados em 2023 são prioridades de atendimento na PNGTAQ, como, por exemplo, Brejo dos Crioulos (MG).
Construção da PNGTAQ
A Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola surgiu a partir de uma demanda da Conaq e passou por um processo de construção coletiva de dez anos, com representantes de comunidades quilombolas, do governo e de parcerias.
A ação foi iniciada em 2015 com um primeiro ciclo de atividades liderado por parceria entre Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), por meio de um Grupo de Trabalho Interministerial no âmbito do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT).
Como resultado, foi elaborado pela SEPPIR, MMA, Conaq e representantes de comunidades quilombolas de 15 territórios um conjunto de diretrizes preliminares para formulação da política. O objetivo das oficinas era coletar as experiências de gestão territorial que as comunidades quilombolas já fazem em seus territórios.
“Nós já fazemos a gestão do nosso território a partir do nosso modo de ser e de fazer. Nós conhecemos nosso território e com isso dialogamos as partes que temos que deixar preservadas, quais são os nossos espaços sagrados, onde a gente pode fazer as roças. A gente sabe onde fica o espaço de cada um, a gente sabe onde estão as nascentes, as cabeceiras dos rios, o período de fazer o plantio, o período de fazer a colheita. Todo esse processo a gente faz naturalmente, essa é a forma da gestão que se faz no território, por isso que é importante a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola, pra vir fortalecer essa autogestão que já se faz”, explica Célia Pinto, coordenadora executiva da Conaq.
Após o primeiro ciclo de oficinas, foi instituído o Grupo de Trabalho de Gestão Ambiental Territorial (GT GAT), com a finalidade de criar um espaço específico para consolidar essa agenda. Em 2017, o MMA lançou edital público para promover o segundo ciclo de oficinas formativas e informativas. As organizações selecionadas para colaborar com a execução técnica foram o ISA e a Negra Anastácia.
No ano seguinte, foram realizadas sete oficinas regionais e duas nacionais envolvendo 170 comunidades quilombolas de todo o Brasil, a fim de aprimorar e validar as diretrizes, objetivos e instrumentos para a Gestão Territorial e Ambiental Quilombola.
Com a mudança de governo, entre 2019 e 2022, a política foi paralisada com o desmonte nos órgãos ambientais e sociais e desinteresse do governo federal em implementar essa agenda. Este ano, com a retomada do governo Lula e a instituição do Ministério da Igualdade Racial (MIR), a PNGTAQ voltou a ser uma prioridade e tornou-se uma linha estratégica dentro do programa Aquilomba Brasil.
“Depois que o MIR criou isso, ele puxou um grupo de trabalho dentro do Aquilomba Brasil para discutir como seria o processo de retomada da gestão territorial ambiental quilombola e convidou a Conaq, que sempre conduziu esse processo, e também o [Instituto Socioambiental] ISA. Nesse GT, foi decidido fazer duas oficinas, que aconteceram em agosto e setembro”, conta Raquel Pasinato, assessora técnica do ISA.
“A primeira atividade, em agosto, foi com um grupo menor de 15 lideranças quilombolas, com o governo e com os parceiros para analisar tudo que já tinha sido feito, entender os trâmites administrativos e fazer os encaminhamentos. Dessa primeira oficina saiu um subgrupo de trabalho para fazer a redação de tudo o que tinha sido produzido já no formato de um decreto. Na segunda oficina, o movimento quilombola trouxe 50 lideranças, mais representantes do governo e parceiros para validar e fazer os ajustes na proposta de decreto. Foi um momento de muita importância das comunidades discutirem quem iria compor o comitê gestor da política, quais os ministérios e como a Conaq ia atuar”, relata.
Membro do Coletivo de Meio Ambiente da Conaq, Francisco Chagas avalia como “imensurável” a importância da elaboração da PNGTAQ pela Conaq. “O movimento quilombola do Brasil se posicionou. Apontou caminhos não apenas para uma estrutura de projeto, mas para uma estrutura de política, e isso é histórico. Nós queremos que a política seja implementada com as comunidades quilombolas e também dentro do processo legal, dentro do direito que as comunidades têm, porque o processo de colonização devastou esse direito e o Estado brasileiro tem essa dívida para com a gente.”
Avaliações do decreto
Célia Pinto que atuou ativamente desde o começo do processo de elaboração da minuta, celebra a instituição da política, mas destaca alguns pontos de observação.
“Tivemos grandes momentos de debates e nos últimos meses centramos fôlego nessa elaboração, embora algumas coisas que nós havíamos colocado, principalmente com relação à participação da Conaq nesse processo tenham sido retiradas”.
A ideia original era que a Conaq, que sempre atuou ativamente, tanto na questão técnica quanto política na luta pelos direitos e políticas públicas voltadas para os quilombolas, integrasse nominalmente o Comitê Gestor. O que não aconteceu.
No Decreto foi publicado em seu artigo 17 as seguintes representações: um representante do Ministério da Cultura; um representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; um representante do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; um representante do Ministério da Educação; um representante do Ministério da Igualdade Racial; um representante do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima; um representante das organizações quilombolas de cada uma das regiões geográficas do País e um representante de entidade quilombola de atuação de âmbito nacional.
Segundo o MIR, “a partir do dia 20 de novembro, as ministras Anielle Franco e Marina Silva, em conjunto com o ministro Paulo Teixeira, devem publicar em noventa dias um ato próprio estabelecendo critérios e procedimentos para a definição das organizações quilombolas que irão compor o Comitê Gestor”.
“Mas a gente entende a importância [do decreto] e fica muito contente com o protagonismo da Conaq na elaboração dessa política para as comunidades quilombolas de todo o Brasil, e que vai servir com certeza de referência para povos afro rurais de outros países”, celebra Célia Pinto, coordenadora executiva da Conaq.
Pasinato também comemora a construção da política pelo movimento quilombola na figura central da Conaq, “afinal, no Brasil, não é todo dia que se faz política pública para a população quilombola. Ainda engatinhamos na reparação histórica necessária”.
“No entanto, o decreto sofreu alterações quando passou a ser operado pelos trâmites internos governamentais. Houve, por exemplo, cortes de instrumentos de gestão associados a legislações ambientais, que poderiam solucionar gargalos históricos de regulamentação para os usos tradicionais quilombolas. Uma pena, mas a PNGTAQ em si é um instrumento que, com financiamento, certamente mostrará ao Brasil a potência de gestão e manejo que os territórios quilombolas desempenham e seu papel na conservação da sociobiodiversidade e no enfrentamento à emergência climática”, avalia a assessora técnica.
“Outra coisa também, que nós ainda vamos debater bastante é a questão da atuação, quais territórios quilombolas que essa política vai atingir. Isso é um debate que nós ainda vamos ter que fazer junto ao governo. Há uma prerrogativa no decreto de que sejam aquelas comunidades que estejam já com seus Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs)* publicados. O nosso desejo é que ela alcance todos os territórios quilombolas. Mas isso é um debate, vamos negociando, discutindo e melhorando”, destaca Célia.
*RTID é o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação. Esse relatório reúne todas as peças técnicas do Incra que subsidiam a proposta de titulação dos territórios
“Agora é monitorar e acompanhar todo o desenrolar, porque não basta só ter um decreto, não basta tá no papel. Mais importante do que estar no papel é a prática e a efetivação. Então isso nós vamos fazer, vamos acompanhar pra que de fato não seja só mais uma política”, afirma Célia Pinto.
“A PNGTAQ é uma política para todas as comunidades quilombolas do Brasil. A restrição é apenas para ações dentro da Política que envolvam direitos reais sobre os territórios. Ou seja, ações que envolvam posse e propriedade da terra estão restritas a territórios com limites determinados. Nestes casos, a publicação do RTID torna-se um componente fundamental”, afirmou, em nota, o Ministério da Igualdade Racial.
Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos do MIR, Ronaldo dos Santos explica que “tem ações da GTAQ que não são perenes, portanto não caracterizam uma violação ao direito à propriedade, como a implantação de uma horta, por exemplo. Outras têm implicações maiores, como obras e construções. Nesse caso o RTID é compreendido como o instrumento que embasa um pouco mais o uso dos espaços”.
Ações para quilombos
“É com muito orgulho, senso de responsabilidade que celebramos este primeiro novembro negro em que o Brasil tem um Ministério da Igualdade Racial, como uma ferramenta para garantir a continuidade histórica das políticas públicas para que sejam cada vez melhores e cheguem em quem mais precisa”, disse a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, durante cerimônia do Dia da Consciência Negra, no Palácio do Planalto.
Juntamente com Lula e outras autoridades, como o presidente do Incra, César Audrighi, e o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, Franco anunciou a titulação federal de dois quilombos, um na Ilha de São Vicente, em Araguatins (TO), e o outro na Lagoa dos Campinhos, em Amparo do São Francisco (SE).
Também foram entregues títulos estaduais para a Associação dos Moradores do Povoado Malhada dos Pretos, em Peri Mirim (MA); Associação dos Moradores do Povoado Santa Cruz, em Peri Mirim (MA) e Associação da Comunidade Negra de Trabalhadores Rurais Quilombolas de Deus bem Sabe, em Serrano do Maranhão (MA), além de um decreto de declaração de interesse social do território quilombola Lagoa das Piranhas, Bom Jesus da Lapa (BA). O decreto marca a retomada da política de titulação de territórios quilombolas no Estado.
Apesar dessas entregas terem sido anunciadas como títulos, Milene Maia, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, explica que, tecnicamente, o anúncio para Araguatins (TO) corresponde a outro instrumento jurídico, chamado Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU). O processo de titulação de quilombos é longo e envolve várias etapas, sendo a titulação definitiva a última delas.
“A Ilha de São Vicente (TO), recebeu, na verdade, um CCDRU, que significa que a administração pública cede o uso para as comunidades tradicionais. Porém não é um título definitivo do território, como estabelece o ADCT 68 da Constituição Federal. Portanto, é um instrumento jurídico frágil”.
A ministra anunciou o investimento de R$5 milhões para as comunidades quilombolas do território de Alcântara (MA). O investimento faz parte de uma parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA). O recurso será utilizado para o fortalecimento de seus sistemas produtivos a partir de um método patenteado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por meio da integração de várias atividades, como criação de galinhas e peixes, compostagem e vermicompostagem e horticultura.
Também será instalada uma usina fotovoltaica para autonomia energética e que permitirá às comunidades fazerem pedido de pagamento por serviços ambientais.
Em seu discurso, Anielle também relembrou a morte de mãe Bernadete e de lideranças quilombolas que foram assassinadas nos últimos tempos.
“O que a trajetória da mãe Bernadete nos ensina é que proteger a população quilombola é proteger o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro. E também a ela, por toda a sua luta, precisamos garantir que o direito à terra não seja uma ameaça ao direito à vida”.
O coordenador da Conaq, Biko Rodrigues, também cobrou um afinco maior por parte do estado brasileiro no processo de avanço para regularização dos territórios quilombolas. “Os territórios regularizados salvam vidas e não colocam as nossas lideranças em situações de ameaças.”
“Titular território quilombola é garantia de direitos. Não podemos mais aceitar tantas mortes, tantas violências sofridas por defender nossos territórios. Os territórios precisam ter dignidade”, disse Sandra Braga, coordenadora executiva da Conaq.