Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, analisa os impasses no Congresso Nacional para a regulamentação do mercado de carbono
*Artigo de opinião publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 19/03/2024
A regulamentação do mercado de carbono enfrenta um impasse no Congresso Nacional. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), priorizou o tema em 2023 com a intenção de levar uma lei promulgada à COP28, em Dubai. Alguns projetos de lei (PLs) já tramitavam no Congresso, mas eram propostas incipientes, não articuladas à meta nacional de redução de emissões e ao objetivo de enfrentar as mudanças climáticas.
Pacheco nomeou como relatora a senadora Leila Barros (PDT-DF), que promoveu audiências públicas, acolheu propostas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e acatou a opção da bancada ruralista (FPA) por não incluir a agropecuária entre os setores da economia sujeitos a metas de redução - apesar das emissões geradas no uso da terra.
O PL 412/22 ficou fundamentado na Política Nacional de Mudanças Climáticas (Lei 12.187/2009) e tem como foco o setor industrial e os projetos de substituição de energias fósseis por renováveis. Prevê ainda projetos de REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) para a conservação e aumento de estoques de carbono florestal, e para manejo florestal, sem fixar cotas ou vedar o acesso de projetos públicos ou privados ao mercado de carbono. Aprovado por unanimidade no Senado, o PL refletia uma abordagem equilibrada e coerente, ainda que passível de ajustes. Foi enviado à Câmara a tempo da análise e devolução ao Senado, para eventual promulgação até dezembro de 2023, data da COP28.
No entanto, o projeto sofreu uma manobra institucional deferida pela Câmara contra o Senado. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, designou como relator o deputado Aliel Machado (PV-PR), que introduziu itens polêmicos na proposta, como reservar um percentual sobre os ganhos para as empresas desenvolvedoras de projetos privados de crédito de carbono.
E foi além, ao limitar o acesso ao mercado aos projetos privados, vedando a emissão de créditos de carbono para projetos jurisdicionais, federais ou estaduais. Para estes, o relator criou a figura de “crédito de não mercado”. Um bode e tanto para os projetos que vários Estados amazônicos estão negociando com a Coalizão Leaf, formada pelos governos dos EUA, Reino Unido e Noruega, e dezenas de empresas globais que esperam acessar créditos de mercado financiando esses projetos.
O texto produzido por Aliel não passou por comissões e foi enviado em regime de urgência para votação em plenário, com parecer final apresentado horas antes da votação, na última semana antes do recesso legislativo. Ele favorece as empresas desenvolvedoras de projetos e veda a participação dos Estados no mercado de carbono.
O mercado admite vários tipos de projetos nas áreas de energia, saneamento, manejo do solo e reflorestamento. Nestes casos, a contabilidade dos estoques, dos ganhos e das perdas em emissões é mais segura em projetos locais. Porém, os projetos locais de REDD+, que visam gerar créditos por desmatamento evitado, se baseiam, com frequência, em contabilidades questionadas até mesmo junto às certificadoras internacionais.
Os projetos jurisdicionais se baseiam na compensação por reduções do desmatamento previamente realizadas e comprovadas por meio de taxas anuais relativas à jurisdição. A aferição das emissões evitadas é muito mais precisa na escala de Estado ou de país do que na de um projeto local.
A gestão dos territórios por povos indígenas, quilombolas, extrativistas e agricultores é fundamental para conter o desmatamento e manter a floresta em pé, mas é o poder público que pode garantir a redução contínua do desmatamento - o que evidencia a impropriedade de sua exclusão desse mercado.
A aprovação do texto de Aliel surpreendeu comunidades, empresas e governos, em especial os envolvidos em projetos jurisdicionais. O Senado poderia corrigir as alterações da Câmara, mas uma manobra regimental desta Casa determinou que os PLs mais antigos, e não os já aprovados pelo Senado, seriam prioritários para tramitação, alterando unilateralmente a regra que sempre prevaleceu no Congresso e ferindo de morte o poder de iniciativa legislativa do Senado.
Baseado nesse truque, o relatório de Aliel propôs um substitutivo a outro projeto da própria Câmara, mais antigo e com conteúdo bastante diverso. Assim, o PL do Senado recebeu parecer contrário e foi arquivado. Significa dizer que não retornará para a análise das alterações feitas na Câmara.
Agora uma nova proposta será alvo do escrutínio do Senado, mas a última palavra sobre eventuais alterações será da Câmara.
O Senado engolirá a manobra regimental da Câmara e a anulação unilateral da sua iniciativa legislativa? Ou responderá à Câmara na mesma medida, arquivando o que virá dela e repondo a sua proposta anterior? O impasse adia a promulgação da lei e mantém a insegurança jurídica, dificultando o desenvolvimento e a credibilidade do mercado.
Há quem diga que o mercado de carbono pode seguir sua configuração “voluntária”, sem regulação em lei. E que as negociações entre os Estados e os investidores podem prosseguir. Mas nos países em desenvolvimento há direitos e interesses assimétricos que a lei deveria preservar e equilibrar. Leis nacionais editadas por outros países deram solidez ao mercado e segurança aos investidores.
Os projetos de REDD+ são de longa duração e envolvem riscos políticos, técnicos e financeiros. Supõem a estabilidade das relações sociais que os envolvem. São altas as chances de mudança de cenários, ocorrência de conflitos e de fatos novos que os afetem. A lei poderia preveni-los ou dirimi-los.
O Congresso, que deveria mediar os conflitos presentes no processo legislativo ou entre as partes interessadas no tema, está carente de mediação. Parlamentares se confrontam, retaliam os demais poderes e usurpam as suas competências, seja para controlar verbas ou para cercear o controle de constitucionalidade pelo STF.
A Câmara privilegiou um segmento empresarial específico e não ouviu o governo nem os Estados. Empresas sérias, governo federal, Estados, entidades e cientistas interessados, assim como movimentos sociais e comunidades tradicionais que querem construir seus projetos, devem se articular para pressionar o Congresso a deixar de sobrepor suas diferenças às necessidades nacionais, aprofundando o debate e promovendo o equilíbrio dos interesses em jogo.