Congresso Nacional poderá manter ou não a decisão do presidente, que vetou 19 artigos e manteve oito
Na última sexta-feira (21/10), duas semanas depois de o Projeto de Lei do Marco Temporal (PL nº 2903/2023) ter sido aprovado pelo Senado, o presidente Lula sancionou a primeira lei ordinária do país sobre a demarcação de Terras Indígenas, vetando inúmeros pontos do projeto – inclusive a tese do marco temporal.
A lei 14.701/2023 regulamenta o artigo 231 da Constituição Federal e deixa de fora a famigerada tese que restringia o direito dos povos indígenas somente às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia considerado a tese inconstitucional.
Agora cabe ao Congresso Nacional manter ou derrubar os vetos, em sessão prevista para o dia 9 de novembro. Para derrubá-los é preciso maioria absoluta: ao menos 257 votos dos deputados e 41 dos senadores. Na redação anterior aos vetos, o PL foi aprovado com 283 votos favoráveis na Câmara e 43 no Senado. Caso haja a derrubada dos vetos a lei entra em vigor, mas ainda pode ser questionada na Suprema Corte.
A lei tem origem no PL nº 490/2007, aprovado pela Câmara dos Deputados em maio deste ano. Ao chegar no Senado, a proposta se transformou no PL nº 2903/2023 e foi aprovada em setembro em meio a disputas e tensões entre os Três Poderes - os senadores aprovaram a proposta no mesmo dia em que o Supremo finalizou o julgamento do Marco Temporal.
Nesse cabo de guerra, além de implementar a tese do marco temporal, outros inúmeros retrocessos foram incorporados ao PL, entre eles os princípios de um projeto racista da Ditadura Militar, que previa a assimilação cultural forçada dos indígenas; a permanência de invasores em Terras Indígenas; a autorização para o agronegócio explorar Terras Indígenas, inclusive com transgênicos; e a anulação de reservas indígenas.
Na sanção da nova lei o presidente optou pelo veto parcial, buscando ampliar as chances de uma vitória frente à oposição ruralista no Legislativo.
No total, 19 artigos foram vetados integralmente, cinco parcialmente e oito foram mantidos. Os trechos vetados já haviam sido considerados inconstitucionais, de acordo com a decisão do STF sobre a tese do marco temporal. Já os mantidos se referem, em sua maioria, a disposições gerais sobre a definição do que são Terras e Reservas Indígenas.
Confira em detalhes os vetos presidenciais:
Fim à tese do marco temporal
O Artigo 4, referente à tese do marco temporal, foi parcialmente derrubado. No despacho, o presidente manteve apenas os parágrafos cinco, seis e oito, que deliberam sobre a transparência do processo demarcatório e sobre a garantia de tradução, oral ou escrita, às partes interessadas.
Os vetos nesse artigo foram justificados em despacho que acompanhou a publicação da lei no Diário Oficial da União:
“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por introduzir a exigência de comprovação da ocupação indígena na área pretendida na data da promulgação da Constituição Federal, a saber, 5 de outubro de 1988, ou então de renitente esbulho persistente até aquela data, desconsiderando a dificuldade material de obter tal comprovação frente à dinâmica de ocupação do território brasileiro e seus impactos sobre a mobilidade e fixação populacional em diferentes áreas geográficas", afirmou a Presidência.
Em nota técnica enviada ao presidente Lula no início de outubro, o Instituto Socioambiental (ISA) já havia pontuado as justificativas levantadas pelo despacho. “O texto aprovado pelo Congresso Nacional constitui a mais grave violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas desde a redemocratização do País e contraria frontalmente o interesse público”, afirma a nota.
Além das razões citadas, o despacho também afirma que a decisão se deu após diálogos com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC); o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA); o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP); o Ministério dos Povos Indígenas (MPI); e a Advocacia-Geral da União (AGU). A pressão das organizações indígenas e indigenistas junto a sociedade civil também surtiu efeito. Ao todo, foram mais de 920 mil assinaturas na petição que pedia o veto ao PL.
Contestação do processo demarcatório em todas as fases
O Artigo 5 do PL do Marco Temporal, por sua vez, constituído em um único parágrafo, foi vetado integralmente. O artigo barrado visava alterar o processo de demarcação, permitindo que qualquer interessado, a qualquer momento, pudesse questionar o procedimento.
Se aprovado, esse artigo poderia inviabilizar novos processos de demarcação e tornar ainda mais longa a espera de povos indígenas para terem seus territórios assegurados. Atualmente, todos os interessados já podem se manifestar, desde que dentro dos prazos determinados, assim como acontece em todo procedimento administrativo.
“Ademais, cabe apontar que atualmente há previsão de manifestação dos Estados, Municípios e demais interessados no procedimento, nos termos do Decreto nº 1.775, de 1996 e da Portaria nº 2.498/11 do Ministério da Justiça", justificou o presidente na publicação oficial.
Anulação de “Reservas Indígenas”
Vetados parcialmente, os parágrafos que ficaram do Artigo 16 foram aqueles que definem o que são áreas indígenas reservadas e a sua gestão. Anteriormente ao veto presidencial, o PL determinava a retomada desses territórios a partir de critérios subjetivos e racistas, como a “alteração dos traços culturais da comunidade” ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.
Segundo o presidente Lula, o texto aprovado pelo Senado representa uma ofensa à Constituição Federal, que afirma em seu 5º Artigo que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Isso porque, segundo o presidente, “as reservas indígenas são áreas com o processo de regularização já finalizado, ou seja, terras indígenas consolidadas, cuja demarcação constitui ato jurídico perfeito e direito adquirido dos indígenas”, concluiu.
Indenização e impedimento à retirada de invasores de TIs enquanto o processo de demarcação não for concluído
Outro ponto vetado pelo presidente, dessa vez integralmente, foi a garantia à indenização pela “terra nua” a posseiros, que estimulava e beneficiava invasores de Terras Indígenas em sua redação original. Foram essas, inclusive, algumas das razões citadas no veto presidencial. Além delas, o despacho também pontuou que, além de ser inconstitucional, o nono artigo poderia ampliar os eventuais custos com pagamento de indenizações a cargo da União.
“Além disso, conquanto não se desconheça que aos não indígenas é sim devido o justo ressarcimento do dano sofrido pela titulação indevida, é de se reconhecer que o §6º do art. 231 da Constituição Federal e as teses fixadas no precedente vinculante exarado pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do RE 1017365 exigem que a indenização das benfeitorias seja derivada de ocupação ou posse de boa-fé pelos não indígenas”, afirma o texto.
Instalação de empreendimentos predatórios sem consulta livre, prévia e informada às comunidades
O Artigo 20 foi vetado parcialmente, em razão de condição prevista na própria Constituição Federal e também do descumprimento a duas convenções internacionais mandatórias sobre povos indígenas: a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).
O texto aprovado pelo Senado autorizava a instalação de empreendimentos como intervenções militares, e a construção de empreendimentos sem consulta prévia às comunidades indígenas envolvidas.
“Ou seja, a oitiva dos indígenas é condição prevista na própria Constituição Federal, motivo pelo qual é inconstitucional a expressão 'independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas'”, destacou o despacho.
Na lei sancionada pelo presidente Lula, a única parte mantida estabelece que o usufruto dos indígenas sobre suas terras não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional.
Contatos forçados com indígenas isolados
Um dos mais perigosos, o Artigo 28 do PL colocava um fim à política de não contato com indígenas isolados, ou seja, aqueles que vivem afastados de outros povos indígenas ou dos não indígenas. O dispositivo foi vetado integralmente pelo presidente sob a prerrogativa de inconstitucionalidade e do risco que ele traz aos isolados.
“Este dispositivo converte a política de não contato em uma política de contatos forçados com os indígenas isolados 'para intermediar ação estatal de utilidade pública', hipótese inédita e demasiadamente ampla que pode gerar ameaças aos povos indígenas em isolamento”, afirmou no documento.
Atualmente, as políticas públicas estabelecidas desde a promulgação da Constituição Federal garantem a esses povos o direito ao isolamento e ao território, com contatos estabelecidos apenas em situações extraordinárias, de riscos à saúde e integridade física, ou em casos em que a aproximação seja feita pelo próprio grupo.
Cultivo de transgênicos em TIs
Vetado integralmente, o Artigo 30 do PL liberava o cultivo e a pesquisa de transgênicos em Terras Indígenas, “contrariando o disposto no art. 1º da Lei nº 11.460, de 2007, com potencial dano à agrobiodiversidade, ao patrimônio genético e à segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas e outras comunidades afetadas", conforme explicou o despacho presidencial.