Instrumentos fortalecem aliança histórica dos Mẽbêngôkre-Kayapó na gestão do território, um dos mais afetados pelo garimpo
Representantes das sete associações Mẽbêngôkre-Kayapó da Terra Indígena Kayapó (Pará) se reuniram no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, no último dia 4 de dezembro, para lançar oficialmente o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e o Protocolo de Consulta da TI Kayapó. Estes instrumentos, construídos de forma coletiva, são considerados marcos para a proteção do território e do modo de vida do povo Kayapó.
O evento de lançamento reuniu lideranças indígenas, autoridades e representantes de organizações parceiras. Em uma cerimônia marcada pela emoção, os presidentes das sete associações Mẽbêngôkre-Kayapó - Associação Floresta Protegida (AFP), Associação Angrôkrere, Associação Pôre, Associação Tuto Pombo, Associação Kranhmeiti, Associação Piôkrere e Associação Pykôre - receberam das mãos das lideranças mais velhas as publicações do PGTA e do Protocolo de Consulta.
Quem conduziu a cerimônia foi Tânia Paiakan, filha da histórica liderança Kayapó Paulinho Paiakan. Honrada, ela celebrou o crescimento do protagonismo feminino na luta de seu povo e deu voz à Vice-Presidente da AFP Nhakton Kayapó, que fez um discurso mobilizador na língua Mẽbêngôkre-Kayapó.
A família Paiakan também esteve representada por Oé Paiakan, chefe da unidade regional da Funai no Sul do Pará, que participou de diálogo sobre o território com outros convidados, Maial Paiakan, Bep’tori Paiakan e Irekran Paiakan, respectivamente filhas, neto e esposa de Paulinho.
O que são PGTAs?
De caráter dinâmico, os PGTAs têm como pano de fundo a expressão do protagonismo, autonomia e autodeterminação dos povos indígenas no seu, até agora, exitoso processo de proteção ambiental e controle territorial. Por essa razão, são tomados como estratégicos para a reflexão e planejamento do uso sustentável dos territórios indígenas, de forma a assegurar a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações e, de outro lado, tendo o não menos importante papel de fornecer subsídios para orientação de políticas públicas ambientalistas e indigenistas, ao demonstrar demanda, por meio de informações válidas e consistentes, de ações estruturantes nas Terras Indígenas a partir de uma correlação entre a política pública e a política indígena. Clique aqui para saber mais.
Para os kuben (termo para “não indígena” na língua Mẽbêngôkre-Kayapó), o protocolo de consulta estabelece as diretrizes e os procedimentos que devem ser seguidos quando decisões ou ações externas possam impactar diretamente direitos, territórios ou modos de vida, de povos indígenas e comunidades tradicionais. Já para os Kayapó é, além disso, um instrumento de união e futuro:
“Esses documentos são muito importantes não só para nós, mas para os nossos filhos e nossos netos. Os kuben, senadores e deputados, precisam respeitar esse documento. Hoje é um dia histórico e eu estou muito feliz por fazer parte disso,” declarou Kenkrô Kayapó, presidente da Associação Kranhmeiti.
Durante o processo de elaboração do PGTA, os Mẽbêngôkre-Kayapó traduziram o termo "Plano de Gestão Territorial e Ambiental" como Pyka mẽ bà mẽ ngô mẽ mẽ’ĩ mẽ ‘ã no am kadjy amĩ pry karõ djiri, que significa "o caminho para cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas". Essa tradução reflete a visão dos Kayapó sobre a gestão de seu território, mostrando que, para eles, o significado da promoção da gestão territorial e ambiental sustentável em Terras Indígenas transcende os limites de uma política pública ou de um plano técnico. Para os indígenas, cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas é um ato que perpassa o passado, presente e futuro. É a garantia de que os ensinamentos dos seus mais velhos continuam vivos, protegendo não apenas o território físico, mas a essência cultural e espiritual que sustenta o modo de ser Kayapó.
A gestão territorial, para os Mẽbêngôkre-Kayapó, é um compromisso com a vida. Não se trata apenas de proteger a biodiversidade ou evitar o desmatamento — embora isso também seja crucial —, mas de proteger a relação entre a floresta e os Mẽbêngôkre-Kayapó. Cada árvore, cada rio, cada animal carrega um significado profundo, conectado à história, aos mitos e às práticas cotidianas que nutrem as vidas das 70 aldeias da TI Kayapó.
Ao lançar o PGTA e o Protocolo de Consulta, os Kayapó reafirmaram sua autonomia e o direito de decidir sobre os rumos de suas terras, enfrentando as ameaças externas com organização e união. Esses instrumentos representam o fortalecimento de um caminho coletivo, onde o futuro do território é construído a partir de suas próprias perspectivas e prioridades, promovendo não apenas a proteção territorial, mas também de suas vidas.
PGTA e Protocolo de Consulta: União em Defesa do Território
A atualização do PGTA e a elaboração do Protocolo de Consulta da TI Kayapó tiveram início em 2021, articulado pela Associação Floresta Protegida. Durante o processo de construção, as associações Angrôkrere, Pôre, Tuto Pombo, Kranhmeiti, Piôkrere e Pykôre se uniram à AFP, formando uma aliança histórica em defesa da TI Kayapó.
Durante a atualização do PGTA, as associações Mẽbêngôkre-Kayapó decidiram unir o Protocolo de Consulta ao PGTA. A decisão reflete a preocupação dos Kayapó com os impactos das pressões e ameaças sobre os seus territórios e comunidades. Os instrumentos se complementam: se por um lado o PGTA apresenta o planejamento para gestão ambiental e territorial dos Mẽbêngôkre-Kayapó, o Protocolo estabelece regras claras para consultas públicas que afetem o território, garantindo que o direito à consulta prévia, livre e informada seja respeitado.
“O PGTA e o Protocolo de Consulta são caminhos para o fortalecimento da nossa organização e do nosso modo de viver. O Protocolo de Consulta é muito importante para nós, pois nosso território está cercado de kuben, que querem expandir o plantio de soja. Quando houver qualquer autorização do Estado sem o nosso consentimento, teremos este instrumento fundamental para apresentar. Devemos fortalecer a nossa tradição, e este documento se torna um meio de reforçar a nossa própria organização social” destacou Kenaka Pombo, presidente da Associação Pôre Kayapó.
Setenta aldeias e sete associações participaram da construção do PGTA e do Protocolo de Consulta, fortalecendo a união entre diferentes regiões da Terra Indígena Kayapó. Para Adriano Jerozolimski, Diretor do Projeto Kayapó no Brasil da International Conservation Fund of Canada (ICFC), o processo foi tão significativo quanto o resultado obtido.
“Exigiu muita articulação política e um esforço de muitas lideranças para reduzir distâncias, estabelecer diálogos e quebrar uma polarização histórica na Terra Indígena Kayapó. Que essa união, propiciada pela construção dessas ferramentas, continue sendo fortalecida, e que os Kayapó possam contar com cada vez mais parceiros na sua luta,” afirmou.
O PGTA e o Protocolo de Consulta também criaram um espaço para que lideranças de diferentes aldeias refletissem sobre os desafios e o futuro de seu território. “Foi um processo de discussões longas, com temas complexos, conduzido de forma propositiva e harmoniosa. Reunimos caciques que raramente têm a oportunidade de sentar juntos para deliberar sobre um território comum. O sentimento que fica é de união e a certeza de que, mesmo antes de sua publicação, o PGTA já está gerando frutos,” destacou Pàtkôre Kayapó, presidente da Associação Floresta Protegida.
Em janeiro de 2024, a Aldeia Gorotire se tornou o centro de um momento histórico para os Mẽbêngôkre-Kayapó. Representantes das sete associações indígenas da Terra Indígena Kayapó se reuniram para validar o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e o Protocolo de Consulta. Mais de 500 Mẽbêngôkre-Kayapó participaram ativamente, firmando um pacto pela proteção da TI Kayapó.
A escolha da Aldeia Gorotire para sediar esse encontro simboliza um marco na relação entre os Mẽbêngôkre-Kayapó, pois Gorotire é a área mais afetada pelo garimpo ilegal dentro da Terra Indígena Kayapó e o palco de uma das maiores invasões de terras indígenas da história do Brasil. Nas décadas de 1980 e 1990, a região foi alvo da corrida do ouro incentivada pelo Estado, que trouxe destruição e violações de direitos.
O garimpo Maria Bonita, localizado nas proximidades da Aldeia Gorotire, foi símbolo da exploração predatória da região. Segundo o líder Kayapó Paulinho Paiakan (in memoriam), a invasão da região foi diretamente incentivada pelo governo, que não apenas facilitou a entrada dos garimpeiros, mas também organizou e participou ativamente da exploração de garimpo ilegal. “A Caixa Econômica Federal estava no garimpo Maria Bonita, também estava a Polícia Federal, a Polícia Militar do Pará. Era um garimpo muito grande”, relatou Paiakan no PGTA da Terra Indígena Kayapó.
Em 1985, os Mẽbêngôkre-Kayapó da aldeia ocuparam o garimpo Maria Bonita em um ato de resistência para exigir a demarcação de seu território. Apesar das negociações terem levado à criação oficial da Terra Indígena Kayapó, os Mẽbêngôkre-Kayapó foram forçados a aceitar a continuidade do garimpo em troca da demarcação da Terra Indígena Kayapó.
“A demarcação mesmo dessa terra, a decisão política sobre os limites que tinham que ser demarcados é de 1985, três anos antes da constituição de 1988. O povo Kayapó conquistou esse território antes da constituição brasileira, em um tempo em que a política indigenista ainda era decidida pelos militares. Os limites desse território tem 3 milhões de hectares e foi duramente conquistado, durante as negociações pelos velhos kayapó com os militares. Em um tempo em que não tinha demarcação do estado. Nesse tempo, tempo duro. Eu lembro que quando foi tomada essa decisão ela foi muito criticada pelos outros militares, que falaram que tinha muita terra para os Kayapó. E foi criticado por outros, que defendiam que para poder ter essa demarcação os kayapó tiveram que aceitar a imposição dos militares em deixar o garimpo dentro do território, relatou Márcio Santilli, presidente do Instituto Socioambiental (ISA), durante o cerimonial de lançamento do PGTA e Protocolo de Consulta.
Agora, quase quatro décadas depois, a validação do PGTA e do Protocolo de Consulta na Aldeia Gorotire representa uma virada na luta dos Kayapó para a proteção de seu território, com a consolidação de uma aliança entre os benadjwyre (líderes), benadjwyre-nire (jovens líderes) e guerreiros das diferentes aldeias, mostrando que a memória do passado pode inspirar a força coletiva do presente. A decisão de realizar esse encontro na ngàbe (casa central) de Gorotire reforça o pacto dos Mẽbêngôkre-Kayapó contra o garimpo ilegal com a transformação das memórias de invasão em inspiração para proteger seus territórios e modos de vida.
Confira o vídeo manifesto produzido pelos Comunicadores Mẽbêngôkre-Kayapó, em forma de vídeo na Aldeia Gorotire
Território da paz
Uma das regras do Protocolo de Consulta é que o governo tem o dever de consultar os Mẽbêngôkre-Kayapó sobre qualquer medida administrativa ou legislativa que os afete diretamente. “Qualquer decisão, seja do governo federal, estadual ou municipal, que tenha impacto sobre o nosso território, nosso meio ambiente e nossas vidas deve ser consultada. A construção de estradas nas proximidades do nosso território, mudanças nos órgãos que trabalham conosco e novas leis e políticas públicas que nos dizem respeito, assim como empreendimentos e grandes projetos que afetem o território, são exemplos de decisões que não podem ser tomadas antes de sermos consultados”, afirmam os Mẽbêngôkre-Kayapó na publicação.
Em relação às empresas que queiram fazer contratos com os Mẽbêngôkre-Kayapó, da Terra Indígena Kayapó, caso demandem decisões que impactem todo território ou que dizem respeito a todas as comunidades - como, por exemplo, o desenvolvimento de projetos de crédito de carbono - as empresas também devem seguir o Protocolo de Consulta. “Nenhum cacique, nenhuma liderança nem nenhuma associação pode decidir em nome de toda a Terra Indígena Kayapó. As decisões que impactam a vida dos Mẽbêngôkre-Kayapó devem ter participação de todos e devem ser tomadas seguindo os procedimentos deste Protocolo”, reforçam no Protocolo de Consulta.
Como enfatizado na tradução do termo PGTA para o Kayapó, "o caminho para cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas" é também um caminho de resistência e de esperança. É o compromisso de um povo que vê na gestão de seu território a base para garantir a dignidade de suas gerações futuras e a contribuição para um planeta mais equilibrado e respeitoso com a diversidade de formas de vida. Para os Mẽbêngôkre-Kayapó, promover a gestão territorial e ambiental é preservar a alma da floresta e, com ela, a essência Mẽbêngôkre-Kayapó.
Ao final da cerimônia, os Mẽbêngôkre-Kayapó entregaram o PGTA e o Protocolo de Consulta a Márcio Santilli, presidente do ISA e aliado histórico do povo Kayapó. Em um discurso emocionante, Santilli recordou momentos marcantes da luta pela demarcação da Terra Indígena Kayapó e prestou uma homenagem aos ancestrais que abriram caminho para as conquistas atuais.
“Esse documento que vocês estão me entregando tem muito valor. É a prova de que, quando a gente ganha a guerra, a memória e o legado se tornam ferramentas para o futuro”, disse Márcio. Ele compartilhou a história de sua primeira visita ao território, em 1986, quando foi convidado para uma reunião no Gorotire sobre a Constituinte. Dessa conversa nasceu a decisão dos Kayapó de irem a Brasília lutar pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988.
Santilli lembrou especialmente Kànhõk, um velho chefe guerreiro que, na época, havia decidido trocar a guerra pela paz em nome do futuro de seu povo. “Kànhõk me disse: ‘Eu nasci e cresci guerreando contra vocês. Se fosse por mim, eu continuaria até o fim. Mas eu sou cacique e preciso pensar no meu povo. Meu povo precisa de paz para que nasçam muitas crianças e ocupem todo esse território. Essas crianças serão os guerreiros Mẽbêngôkre do futuro.”
Ele destacou que o legado de Kànhõk está presente na força e na união dos Kayapó de hoje. “Esse documento une vocês na memória dos velhos que iniciaram essa luta e garantiram o território que hoje vocês protegem. Vocês têm a obrigação de cumprir o que está escrito aqui, porque ele é fruto do sacrifício de muitos que já não estão entre nós.”
Santilli finalizou com uma homenagem ao território e ao povo Kayapó, propondo uma reflexão: “Esse lugar é chamado oficialmente de Terra Indígena Kayapó, mas, se vocês quiserem, podem chamá-lo de Território da Paz. Foi o acordo e a luta que deram a vocês o tempo para crescerem e se tornarem um povo grande e forte, como são hoje.”