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Nota sobre os fatos ocorridos na comunidade Tradicional caiçara Rio Verde e Grajaúna

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Os recentes fatos envolvendo a comunidade caiçara Rio Verde e Grajaúna, em Iguape (SP), e o conhecimento do Instituto Socioambiental (ISA) sobre a região, onde mantém, desde 1998, o Programa Vale do Ribeira, nos motivam a esta manifestação formal em defesa das comunidades ali residentes.

O Mosaico da Juréia-Itatins abarca um dos mais importantes remanescentes de Mata Atlântica do país, uma paisagem sociocultural cuja complexidade é resultado de contínuas interações dos povos indígenas e das comunidades caiçaras com a floresta. A ocupação da região pode ser traçada até cerca de 5 mil anos atrás com comprovação arqueológica, histórica e nos traços deixados na própria floresta. Ao longo do século XIX, a expressiva ocupação caiçara na região da Juréia se traduzia em casas de pau-a-pique e roças de subsistência nas áreas de restinga, no interior da Mata Atlântica e também na várzea do Rio Verde. Ao longo do século passado, a ocupação dos caiçaras é comprovada por diversos documentos, como, por exemplo, o mapa de 1957, do Arquivo Público de São Paulo, que demonstra a posse das terras da praia do Rio Verde e Grajaúna e a ocupação da região por inúmeras famílias caiçaras.

A partir de 1986, com a criação da Estação Ecológica da Juréia-Itatins, surgiram conflitos em torno do uso da terra e um processo de esvaziamento da região se iniciou. Os caiçaras foram expulsos pelo cansaço, espelhado nas dificuldades cotidianas derivadas das limitações de uso da terra e dos recursos naturais impostas aos moradores, e pelo preconceito, dado que seu papel na formação daquela paisagem foi negligenciado e sua forma de viver, desrespeitada. Depois de anos de luta dos caiçaras, a área foi recategorizada, em 2006, como o Mosaico de Unidades de Conservação da Juréia-Itatins. Em 2009, o Mosaico foi revogado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e em 2013, foi recriado. Nesse processo, duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável foram estabelecidas, mas nem todas as famílias caiçaras foram contempladas.

O ISA acompanhou esse processo, atuando na elaboração do Plano de Manejo do Mosaico de Unidades de Conservação Juréia-Itatins, em parceria com a Universidade Estadual de Campinas em 2008 e 2009. Esse processo foi suspenso pela revogação do Mosaico e não foi retomado.

A Lei Estadual 14.982/2013, que criou a atual configuração do Mosaico, possui patente vício de convencionalidade ao pretender que os moradores tradicionais escolham territórios estabelecidos como Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), com os quais não mantêm relações históricas de ocupação, ao invés daqueles onde tradicionalmente viviam. O discurso do Estado e daqueles que apoiam a retirada dos moradores do Rio Verde e Grajaúna afirmando que se trata de área de “mata virgem”, não encontra apoio nos fatos e contradiz o próprio Cadastro Geral de Ocupantes, realizado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de SP, publicado em 1990, com base no Decreto Estadual 32.412/1990.

Tal cadastro identificou a existência de 22 famílias, ou 79 pessoas, residentes no local, que se encontravam na área como empregados de terceiros ocupantes em decorrência dos processos de especulação imobiliária, e que mantinham roças de subsistência. Ou seja, o próprio Estado atestou que na localidade havia a presença humana, confirmando, como se verifica em diversos outros documentos, que a área tem sido historicamente ocupada, o que pode ser facilmente verificado no local por meio da existência de árvores frutíferas, plantas ornamentais e medicinais. As casas construídas, duas delas já demolidas, são taperas, pequenas construções de baixo impacto, erguidas em áreas antes ocupadas pelos avós dos jovens moradores.

Há estudos arqueológicos e antropológicos, inclusive solicitados pela Fundação Florestal, que comprovam não apenas a profundidade temporal da ocupação humana na Juréia, mas também que a família em questão no conflito atual é uma de suas principais representantes. O documento “O Sistema Sócio-Ecológico da Juréia-Itatins Histórico de Ocupação da Região do Rio Verde”, recentemente elaborado por vários pesquisadores renomados da área da biologia, da ecologia, sensoriamento remoto e antropologia, apresenta fotos ortorretificadas da década de 1960, em que é possível verificar que a área do Rio Verde era manejada por roças itinerantes em diversos estágios. O manejo da floresta nesta área por roças, que seguem técnicas e conhecimentos tradicionais, levou à formação da paisagem que, na década de 1980, foi considerada como uma das mais preservadas por diversos setores ambientalistas.

É importante mencionar que Edmilson de Lima Prado, como considera minuciosamente o Laudo Antropológico elaborado por antropólogos da USP e UNICAMP, preenche os requisitos de identificação da tradicionalidade constantes no artigo sétimo da Lei do Mosaico de Unidades de Conservação Jureia-Itatins. Neste sentido, o Laudo levanta documentação que comprova que Edmilson é descendente direto de membros reconhecidos no cadastro de 1990, cumprindo o primeiro requisito; possui moradia habitual no Rio Verde, cumprindo o segundo requisito; e que se dedica a trabalhos de subsistência no âmbito da pesca e agricultura tradicional, cumprindo o terceiro requisito. O cumprimento do terceiro requisito do artigo sétimo da Lei do Mosaico deriva de densa relação social e cultural de Edmilson de Lima Prado e família na comunidade do Rio Verde e Praia do Una. A título de exemplo, (segue citação expressa do Laudo), “há documentação em abundância que data, pelo menos, do período da Lei de Terras de 1850, em cujo vínculo entre a família Prado e a comunidade do Rio Verde e Praia do Una é certificado”; vários pesquisadores, dentre eles, Plácido Cali, reconhecem a família Prado como portadora de patrimônio imaterial, por meio de técnicas e conhecimentos tradicionais que até hoje desenvolvem, bem como reconhecem a sustentabilidade de seu modo de vida; a família Prado é reconhecida como portadora da cultura imaterial do fandango, reconhecidamente pelo IPHAN.

Vale lembrar que os caiçaras tentam, há muito tempo, restabelecer o diálogo com a Fundação Florestal. Com a suspensão do processo de elaboração do Plano de Manejo, a União dos Moradores da Juréia e a Associação dos Jovens da Juréia assumiram o desafio de elaborarem um Plano de Uso Tradicional (PUT), com apoio de pesquisadores e parceiros, seguindo os ritos da legislação, mas considerando também as formas de organização e o tempo das comunidades, com sua autonomia para a tomada de decisão. Este trabalho foi apresentado a vários parceiros, inclusive o ISA, e também em 2018 à Fundação Florestal que, segundo as associações envolvidas, nunca se pronunciou a respeito do documento.

Ao atuar apenas no âmbito administrativo, após diversas tentativas de diálogo, algumas delas intermediadas pela Defensoria Pública Estadual e pelo Ministério Público Federal, o Estado assume seu posicionamento pela autotutela no tema, desconsiderando os instrumentos legais que garantem à essas comunidades seu direito ao território onde perpetuam suas práticas tradicionais. São elas que garantiram ao longo de séculos a manutenção desse importante remanescente de Mata Atlântica, por meio da cultura caiçara, reconhecida como um patrimônio brasileiro. O direito ao território tradicional e as garantias para a preservação de seus modos de viver estão assegurados aos caiçaras pela Convenção OIT 169, ratificada pelo Brasil, pela própria Constituição Federal de 1988 e pelo Decreto 6.040/2007.

Ao questionar a ocupação tradicional das famílias residentes no local e criminalizar os três jovens casais, que, comprovadamente, são descendentes de, pelo menos, oito gerações de moradores do Rio Verde, o Estado de São Paulo perde a oportunidade de criar condições para uma solução que, de fato, traga benefícios ambientais para toda a sociedade, e que respeite o patrimônio cultural, fruto da existência dessas comunidades.

Urge que a Fundação Florestal revisite sua concepção de conservação da Mata Atlântica, entendendo a floresta como uma paisagem intercultural que depende da aliança com os caiçaras e outros povos tradicionais para sua manutenção. A discussão do Plano de Uso Tradicional, que propõe uma compatibilidade entre a conservação da biodiversidade e a preservação dos modos de viver caiçara, deve ser a base para a retomada do diálogo entre as partes e para a solução para o conflito.

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