Indígenas da região relataram que os cantos das rãs anunciaram as cheias, mas as chuvas demoraram
Entre o final de fevereiro e começo de março, na região do Rio Tiquié, Alto Rio Negro (AM), os cantos das rãs têm início, anunciando as cheias. Este ano, nessa época, as rãs já estavam cantando na comunidade de São Pedro, mas as chuvas atrasaram.
“As rãs cantam na época logo antes da cheia. Agora, embora as rãs estejam cantando, o rio não está subindo, pelo contrário, está secando”, relatou Roberval Sambrano Pedrosa, do povo Tukano, Agente Indígena de Manejo Ambiental (AIMA).
Essas observações coincidem com as indicações dos órgãos oficiais. No ano em que o Amazonas apresentou seca recorde, a estiagem no Médio e Alto Rio Negro foi prolongada, com o período de mínima registrado antes do esperado, altas temperaturas, sensação de água fervente, racionamentos de energia e alimentos e, ainda, o impacto de fumaça de incêndios ocorridos em outros pontos da Amazônia, principalmente Roraima.
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Nessa região, a estação seca vai de agosto a março, sendo que historicamente aumenta em janeiro e fevereiro - em São Gabriel da Cachoeira, o recorde foi atingido em fevereiro de 1992, quando o Rio Negro chegou a 330 cm.
Na estação seca entre 2023 e 2024, a situação foi diferente. A mínima aconteceu em 9 de novembro, com o rio atingindo 492 cm. Em seguida, no final de 2023, foi registrado o chamado repiquete – o rio sobe para em seguida voltar a descer.
Mas, em março deste ano, a situação da seca se acentuou novamente, com o rio atingindo 533 cm no dia 1º de março. Esse nível está abaixo do ano da seca recorde: em março de 1992, o rio estava em 573 cm.
Conforme informações do Serviço Geológico do Brasil - Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (SGB-CPRM), entre agosto de 2023 e fevereiro de 2024, houve um déficit de 30% nas chuvas na bacia do Rio Negro e Solimões. A média é de 1.290mm, mas choveu 925mm, refletindo no nível dos rios.
Uma possível explicação é o El Niño e o aquecimento das águas do Oceano Atlântico, alongando a seca e propiciando incêndios em algumas regiões da Amazônia. Em São Gabriel da Cachoeira, não foram registrados incêndios. Mas a fumaça chegou até o Alto Rio Negro, mesmo essa sendo uma das regiões mais preservadas das Amazônia.
Ane Alencar, geógrafa e diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), afirmou que o impacto do início de período chuvoso na região ainda não foi suficiente para recuperar a vazão do rio.
“O El Niño normalmente causa seca na Amazônia e, dependendo da sua intensidade, vai causar mais seca. O que houve em 2023 é um El Niño forte e, ainda, o aquecimento desproporcional das águas do Atlântico, tirando umidade do sistema. Esses dois efeitos por algum motivo se juntaram e se potencializaram e geraram essa seca desproporcional que afetou principalmente o Norte do Amazonas, que pega a região conhecida como Cabeça do Cachorro, Roraima, Norte do Pará. A região continental da Amazônia”, explicou.
A região do município de São Gabriel da Cachoeira é conhecida como Cabeça do Cachorro devido a seu contorno no mapa.
Conforme apontou a pesquisadora, nessa área a seca se estendeu tanto no início quanto no fim, gerando anomalias no calendário tradicional e impactando o dia a dia das comunidades.
O nível dos impactos ainda está sendo analisado. “Os impactos podem ser mais preocupantes, visto que o ecossistema como um todo, plantas e animais, não estão acostumados a esse tipo de estresse. O impacto ecológico acaba interferindo também nas comunidades e seus calendários, inclusive para a segurança alimentar dos povos da Amazônia”, analisou.
Relatos dos povos do Rio Negro
Essas alterações no calendário tradicional vêm sendo observadas pelos AIMAs. Damião Barbosa, do povo Yebamasã, também integra a Rede de AIMAs e compartilha algumas das suas observações feitas na região do Rio Tiquié, onde ele mora, na comunidade de São Filipe.
“Lá no Igarapé Castanho, o verão passado foi muito forte, começou perto de agosto. Nessa época (março de 2024) seria tempo de piracema, mas está um pouco atrasada. As rãs já cantaram, mas a piracema ainda não veio. As rãs cantaram em janeiro e fevereiro e nessas épocas os rios e lagos encheram, mas pouco em comparação com os outros anos. Além das rãs, tem esse sapo, o tuhuã, que cantou muito, ele canta nessa época de umari. Nós estamos esperando uma grande piracema (o som desses animais indica a época de subida do rio, que é quando ocorrem os eventos de reprodução dos peixes) porque as fêmeas de alguns peixes já estão com muitas ovas, como o aracu três pintas, o pacu, a traíra, e o jandiá, todos eles estão só esperando o rio encher para começar a reproduzir. Também a constelação que está caindo agora é Bigode de Onça (Yai Uhsekopuari, em Tukano) que é quando ocorre a maior enchente”, disse.
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O comunicador João Alex Lins, do povo Yanomami e integrante da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, informou que na comunidade Maturacá, na porção do Amazonas da Terra Indígena Yanomami, a seca do Rio Cauaburis foi alarmante.
“Essa [seca] que a gente vivenciou, os fatos narrados pelos mais velhos, é que a seca sempre existiu, mas não como essa que a gente presenciou. Os rios ficaram muito secos, o calor do sol ficou assustador e irritante. Percebemos essas mudanças climáticas em todas as regiões do planeta. Se percebe e é preocupante. É atingido por dificuldade de locomoção, a gente depende muito das viagens fluviais”, contou.
Apesar dessa situação, ele avalia, a floresta pode ter evitado uma situação mais drástica: “quanto mais floresta, mais capacidade de gerar chuva e mais capacidade da água ficar no sistema quando chove, porque a água não vai evaporar ou lixiviar muito rápido. Então, sim, a floresta é muito importante para aumentar a capacidade de resistir à seca”.
A seca histórica de 2023 no Amazonas afetou todas as 62 cidades do Amazonas e, segundo a Defesa Civil do Estado, atingiu diretamente a mais de 600 mil pessoas.
Em Manaus, o Rio Negro atingiu a marca de 135,9 cm, a menor desde 1902, quando começou a medição no porto da capital. Na capital, o chamado verão amazônico (quando chove menos) vai de junho a outubro.
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Impactos nos territórios
No Alto Rio Negro, houve diversos impactos da estiagem severa. As balsas que transportam combustível que abastece os postos e a termelétrica de São Gabriel, assim como alimentos, não conseguiram subir o rio, levando a um quadro de desabastecimento.
Em 18 de outubro do ano passado, autoridades se reuniram no Fórum local para discutir a questão. No dia seguinte, moradores organizaram um protesto em frente a essa instituição, cobrando providências.
Na época, foi informado que a cidade teria combustível somente por mais quatro dias, havendo risco de apagão. Para que a população não ficasse totalmente sem fornecimento de energia, foi estabelecido racionamento de até 18 horas ao dia entre 19 e 23 de outubro, levando a uma série de transtornos e impactos até nos serviços essenciais, como atendimento nos centros de saúde.
Em novembro, a comunicadora indígena Juliana Albuquerque, do povo Baré, da Rede Wayuri, fez uma foto denunciando o lixo às margens do Rio Negro, em um dos principais portos da cidade. A foto viralizou na cidade e levou à mobilização Dia D – o Rio Negro não é lugar de lixo, que coletou cerca de 10 T de lixo. A mobilização foi finalista no Prêmio Megafone de Ativismo.
Além disso, durante todo esse período, ocorreram problemas como o racionamento de energia e água, dificuldade de acesso à água nas comunidades indígenas, sensação de água fervente no rio, morte de peixes principalmente nos lagos, falta de produtos alimentícios nos supermercados, alta de preços, suspensão de aulas.
O transporte de passageiros nos barcos recreio - embarcações maiores, com espaço para pendurar redes - foram suspensos em alguns períodos, ficando disponível apenas a lancha rápida.
Em março deste ano, o rio ficou abaixo da mínima histórica, indicando uma maior lentidão na recuperação. O transporte de passageiros foi novamente suspenso. A termelétrica já havia se organizado com o estoque de combustível, não havendo falta de energia. Entretanto, os moradores conviveram com falta do fornecimento de água.
No início de abril, as chuvas começaram na região, mas continuam abaixo da média. Em São Gabriel, o serviço das balsas ainda não havia se normalizado totalmente, conforme informações de comerciantes da cidade.
Previsões
Em 2024, os rios do Amazonas devem ter cheia menos intensa, conforme o Serviço Geológico do Brasil (SGB), cenário resultante da seca severa de 2023 e de chuvas abaixo da média, o que dificulta a recuperação dos rios. As previsões contemplam os municípios de Manaus, Manacapuru, Itacoatiara e Parintins.
No noroeste do Amazonas, onde está São Gabriel da Cachoeira, as projeções indicam chuvas acima da média.
O órgão divulgou o Alerta de Cheias do Amazonas em 2 de abril. “Podemos destacar, por meio dos modelos de previsão, que a cheia de 2024 no Amazonas não será de grande magnitude”, informou a pesquisadora em geociências do SGB, Jussara Cury.
Segundo as previsões (com 80% de intervalo de confiança), o Rio Negro deve atingir 27,21 m em Manaus, com possibilidade de chegar à máxima de 28,01 m.
As previsões climatológicas, divulgadas pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), indicam que as chuvas na Região Amazônica podem retornar à normalidade com o fim do El Niño.