Para juristas e operadores do Direito, Convenção 169 da OIT é expressa e não admite interpretações
Desembargadores, procuradores da República, juízes federais e estaduais, defensores públicos, juristas e advogados populares se juntaram a advogados quilombolas e indígenas em evento no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), com sede na cidade de São Paulo, para se debruçarem sobre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O dispositivo propõe a garantia de participação de povos e comunidades tradicionais nas tomadas de decisão em situações, propostas pelo governo ou pelo setor produtivo, que impactem suas vidas em seus territórios.
O evento foi proposto em função do lançamento do livro “Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. Assim como o livro, o evento se destinou à avaliação e à discussão da jurisprudência nos tribunais brasileiros acerca do tratado internacional, conhecido como Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, especificamente em seus artigos 6º e 7º, que se dedicam ao direito à consulta.
Aprovado em 1989, em Genebra, na Suíça, e em vigor internacionalmente desde 1991 enquanto Norma Internacional do Trabalho, o instrumento necessitou de um ato formal do Estado brasileiro para ter vigência na legislação nacional. E, embora tenha sido aprovado pela Câmara em 1993, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº34/93) só veio a se tornar vigente em 2003, após quase uma década de engavetamento no Senado, onde só obteve aprovação em 2002.
Desde então, compreendido como um instrumento de diálogo entre o Estado e os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), o PDL nº34/93 possui natureza instrumental e acessória ao conjunto de direitos reconhecidos a estas comunidades no arcabouço jurídico brasileiro, nas normas e instrumentos nacionais e internacionais vigentes no país.
Desconhecimento generalizado e deliberado
Nas palavras dos juristas e operadores do Direito presentes no evento no TRF3, muito embora a Convenção 169 da OIT apresente importantes avanços no reconhecimento e na garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais coletivos de PCTs, e seja compreendido como o instrumento internacional mais atualizado e abrangente no que diz respeito às suas condições de vida, sua aplicação por parte do Estado e sua garantia no âmbito jurídico brasileiro ainda são bastante tímidas.
A razão para isto é o desconhecimento generalizado e deliberado dos agentes estatais que deveriam aplicar as premissas da consulta prévia, livre e informada antes de qualquer tomada de decisão que afete as vivências destas comunidades em seus territórios, como também por aqueles que deveriam garantir sua aplicabilidade no âmbito legal.
Exemplos práticos da aplicabilidade do dispositivo de consulta prévia são os empreendimentos para a geração de energia elétrica, desde as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) espalhadas pelo país, passando por gigantes como a Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, situada à bacia do Rio Xingu, na região norte do Estado do Pará.
Entram nesse grupo também a instalação de plataformas de exploração de petróleo, como em todo o Polígono do Pré-Sal, no mar territorial entre os estados de Santa Catarina e Espírito Santo, a extração de minérios como o potássio no Amazonas, que possui a segunda maior reserva do planeta e incidências administrativas e legislativas que tenham impacto não só no território, mas na rotina, na cultura ou nos modos de vida das comunidades tradicionais.
A determinação da Convenção 169 é para que, antes mesmo de se iniciar o projeto para qualquer que seja o empreendimento ou a tomada de ação que interfira diretamente na vida de PCTs, o direito à consulta prévia, livre e informada seja devidamente aplicado – o que não ocorreu em nenhum dos casos citados e que, quase em sua totalidade, somente ocorre a posteriori, após judicialização, quando os impactos já foram sentidos pelas comunidades. Ou seja, quando já não há mais espaço para o diálogo, uma vez que as decisões já foram tomadas unilateral e arbitrariamente.
O evento “Convenção 169 da OIT na jurisprudência brasileira: perspectivas e desafios” ocorreu nos dias 18 e 19 de abril, no auditório da Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3º Região.
Acompanhe trechos do debate realizado no TRF3 sobre o direito dos Povos e Comunidades Tradicionais à Consulta Prévia, Livre e Informada
Somos as primeiras gerações que nascem livres, a minha e a de meu pai. Meus avós foram escravizados. Em 1888 tivemos uma abolição formal, mas inconclusa, da escravidão no Brasil. E foram cem anos de invisibilização jurídica. Passamos a ser sujeitos de direitos em 1988, com a Constituição Federal, a partir da garantia do direito ao território. Mas, mesmo assim, sempre vivemos ameaças atrás de ameaças. O direito à consulta prévia é para equilibrar a balança.
E os Protocolos de Consulta são os regulamentos das próprias comunidades, a partir de como elas se mobilizam, se organizam e se movimentam. Mas o governo vai atropelando os passos. São muitos os vícios que a gente observa. A consulta prévia não é audiência pública, não é mensagem de WhatsApp. Só haverá diálogo se houver um protocolo adequado.
Um dos símbolos da escravidão era a mordaça. E a gente não quer isso mais. A gente quer Anastácia livre!
(Rafaela Santos, Advogada Popular da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras – Eaacone)
É histórica a luta de povos e comunidades tradicionais por fazer valer a Convenção. Temos o marco da Constituição Federal, mas nossa luta por direitos remonta à colonização. Mas, ainda hoje, nossas identidades são pouco reconhecidas. As pessoas entendem que a consulta prévia é uma audiência pública, mas não é. Nós ficamos reféns das interpretações na hora de fazer valer o nosso direito. Tem que respeitar a cultura de cada povo, que é quem determina a forma e o tempo em que querem ser consultados.
(Adriana Souza Lima, Educadora Popular, Monitora Ambiental e Promotora Legal Popular)
O que precisamos debater é o que a gente consegue fazer para avançar no âmbito do sistema de Justiça acerca da observância do direito à consulta prévia. A Convenção deixa isso muito nítido, mas nem todos os juízes têm este entendimento, só os mais flexíveis. Existe um melindre. Mas, em primeiro lugar, é preciso compreender que este é um direito efetivo. O Protocolo de Consulta não deve ser enxergado como um mero rito. O objetivo é ter consentimento. Nosso desafio é fazer o sistema de Justiça entender que este é um direito aderente.
(Yuri Luz, Procurador da República – Ministério Público Federal)
Nós temos compreendido que o processo de consulta é um processo de decolonização. E talvez seja por isso que a gente não tenha conseguido efetivar este direito até hoje. Porque a Convenção 169 vem trazer o poder a estes povos e comunidades. Estamos na etapa 4 de licenciamento de uma gigante exploração de petróleo na Bacia de Santos e até hoje não conseguimos fazer valer este direito. O Ibama diz, desde a etapa 1, que não vai ter impacto nas comunidades indígenas, quilombolas e de pescadores. Só agora conseguimos provar que haverá impacto a estas comunidades. Mas a decisão de explorar ou não foi tomada antes mesmo dos leilões. Então a consulta prévia foi ultrapassada. O que for feito agora soa como figurativo. Colocamos vários ministérios na mesa e eles perguntaram se as centenas de comunidades desde a Bacia de Guanabara até o fim do litoral paulista têm seus devidos Protocolos de Consulta. Mas, na totalidade, elas não têm. E então surge um novo impasse sobre regulamentação. O que seria inverter a lógica do Protocolo.
(Walkíria Picoli, Procurador da República – Ministério Público Federal)
Os Protocolos Comunitários têm o poder de mudar estruturas. O Protocolo é como uma regra básica, e os planos de consulta desenvolvidos a partir daí são a concretização destes Protocolos. É aqui que há um espaço privilegiado para a construção de políticas públicas. E nós precisamos ter como referência que a autoatribuição é o pilar desta discussão. São os povos e comunidades que dizem quem são. E cada um determina seu próprio Protocolo de Consulta.
(Andrew Toshio, Defensor Público do Estado de São Paulo)
Quem deve realizar a consulta prévia é o Estado. E a gente tem um problema grave no planejamento estatal. Mas o Estado brasileiro precisa lançar mão de dispositivos para garantir esta efetivação. Não se constituem direitos sobre os direitos originários. Eles são inalienáveis. Há uma dificuldade em compreender que, quando se trata de PCTs, o movimento parte de baixo para cima, e que este é o único movimento possível para a garantia de direitos. O Estado brasileiro precisa de boa fé e de boa vontade. E o Judiciário, (precisa) compreender que a demora da Justiça gera um vácuo de legalidade, o que abre espaço para a violência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que a Convenção 169 é um princípio geral de garantia de direitos, e nós temos o dever de realizar uma defesa intransigente desses direitos.
(Juliana de Paula, assessora jurídica do Instituto Socioambiental – ISA)
Foi uma iniciativa muito importante a organização deste livro. Por isso, parabenizo o ISA e o Observatório. Porque se a Convenção tem um texto expresso e muito literal, como o universo de incerteza e dúvidas se cria? Estas dúvidas são construídas socialmente, a partir da dificuldade de se pensar estes povos e comunidades como detentores do Direito. Todas estas controvérsias têm intencionalidade. Como é o caso das dificuldades na questão fundiária. Se o Direito pressupõe um caráter ético, como alegar confusão entre audiência pública e consulta prévia?
(Maíra Moreira, Pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários)
Às vezes é preciso explicar aos tribunais que PCTs vão além de povos indígenas. Porque nos deparamos com muitas interpretações, até mesmo de que em territórios não titulados ou não demarcados não precisa de consulta prévia. Estamos passando por isso com as indústrias eólicas. Elas passam por leilões sem a consulta prévia. E estas eólicas estão matando povos e comunidades tradicionais. Outro exemplo foi a transposição do Rio São Francisco, que não realizou consulta, e é bom ter em mente que ainda não terminou. Estas são as energias que são apontadas como limpas, mas que não são.
(Clarissa Marques, Pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários)
Existe um devido processo legislativo, apoiado no artigo 231 da Constituição Federal que, interpretado à luz da Convenção 169 da OIT, diz que este é um direito constitucional. Logo, se entende enquanto cláusula pétrea. E é importante ressaltar que um dos maiores adversários está em um dos lados da Praça dos Três Poderes: no Congresso Federal. Além disso, os acessos a quem decide são assimétricos. E isso está muito profundamente penetrado nos sistemas de Justiça. É preciso propiciar a democratização destes espaços.
(Daniel Sarmento, Professor Titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
O Judiciário pode se posicionar melhor, aceitando que não sabe. Não podemos pensar que sabemos tudo e impor nossos modos de vida enquanto hegemônicos. Os povos (tradicionais) são vistos como incapazes de decidir por eles mesmos. Há uma recusa das instituições por compreender esta matéria. Isto tem que constar na formação dos magistrados. É essencial. Sem conhecer, a gente pode supor que ele (o direito à Consulta) não existe. E isso pode acarretar no sofrimento e no fim de muitas comunidades.
(Hallana Duarte Miranda, Juíza de Direito Titular da Comarca de Eldorado – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)
Esta escuta emerge como uma solução premente. Mas os magistrados não sabem destas matérias. Eles estão num ambiente de despreparo. Por que não conseguimos ouvir? Porque temos tempos diferentes. Vamos precisar chegar num meio de caminho para resguardar este País que é tão diverso. Vamos ter de encontrar soluções possíveis. Às vezes me pergunto se somos mesmo civilizados, até mesmo diante de tantos animais irracionais.
(Daniele Maranhão, Desembargadora Federal – TRF1)
Trago não só os conhecimentos da minha ancestralidade, mas acumulei o conhecimento de vocês para estar aqui em pé de igualdade. Além da Convenção, que já tem caráter supralegal, os povos têm os Protocolos de Consulta escritos do jeito que vocês gostam: Times New Roman, tamanho 12. Nós estamos prontos para dialogar quando vocês chegarem. Mas tudo isso afetou nossa organização. São as mulheres que têm o conhecimento ancestral, mas o governo só chama os homens para conversar. Às minhas ancestrais eu honro estar aqui hoje.
Maíra Carneiro, Liderança Pankararu, Assessora da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho)
O paradigma foi mudado em 1988, mas de nada adiantou. Todas as hidrelétricas de lá para cá foram instaladas sem consulta prévia. O que mudou foi o paradigma do direito individual para o coletivo, e isso é fruto de lutas sociais profundas. Lá atrás, quando se compõe o Direito, ele expulsa o coletivo, a mulher e a natureza. E são eles que determinam as perspectivas de futuro. Sem isso nós não temos solução.
(Carlos Marés, Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
É chegada a hora de abrirmos as portas do Judiciário para os povos e comunidades tradicionais, sem formalismos e sem o juridiquês. O juiz federal tem que ser o juiz das massas, de quem foi esquecido ao longo dos séculos. O Judiciário de hoje não pode ser hermético. Temos que ter a capacidade de querer aprender com a sociedade para que ela nos transforme e que a gente use uma nova linguagem, a linguagem dos povos, como uma expressão legítima e dominante.
(Carlos Muta, Desembargador Federal, Presidente do TRF3)
Precisamos mudar o cérebro do nosso país. Ele veio de fora, de cabeças maldosas. Precisamos reflorestar a nossa mente, porque ela está monoculturada. Ñanderu está mostrando que a Terra está muito doente, com 44ºC de febre. E se para o Congresso é tudo negócio, para nós a Terra é mãe. Hoje, para demarcar terra precisa de governo, Justiça, de antropólogo. Mas quando foi para tirar nossas terras não precisou de nada. Eles criaram a Constituição, mas eles mesmos querem assassinar a Constituição. Não respeitam nossos direitos, muito menos o meio ambiente. Para eles, um boi vale mais do que uma criança em nossos territórios.
(Anastácio Peralta Ava Kwarahy Rendyju, liderança Guarani-Kaiowá, graduado em Licenciatura Intercultural Indígena e mestre em Educação e Territorialidade)
Eu tenho muita esperança de que este evento reverbere muito. Porque eu considero este um encontro histórico. Eu não me lembro de um evento como este, com esta presença tão diversa. Então eu tenho a esperança de sensibilizar as pessoas no sentido de dar a conhecer esta realidade e este direito. A Convenção 169 é pouco conhecida, pouco aplicada. Então, dar esta visibilidade é muito oportuno.
(Maria Luiza Grabner, Procuradora Regional da República, Coordenadora do GT Nacional do MPF sobre Comunidades Quilombolas)
Para quem tem martelo, tudo é prego. E assim a Justiça vai sendo aplicada. Então, este evento faz parte de um processo de incorporar nas instituições os princípios constitucionais de um Estado plural que, necessariamente, deve incluir todos os grupos, ouvir e abrir as portas para as pessoas. A gente não pode ficar encastelado, falando para nós mesmos. É interesse da comunidade e é interesse também dos magistrados poder ampliar seus horizontes, suas visões de mundo. Acho que todos só têm a ganhar.
(Cristina Melo, Desembargadora Federal - TRF3)
Assista às mesas do evento
Dia 18.04, manhã:
Dia 18.04, tarde:
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